O Estado de S. Paulo

A NOVA CARA DO ROCK: TOLEDO

- Guilherme Sobota

Onde estão os grandes jovens compositor­es do rock em inglês? A Academia Sueca, com o seu movimento ousado de conceder a Bob Dylan o Nobel de Literatura em outubro passado, ajudou a provocar (não que ela algum dia tenha se perdido) a busca por letras inteligent­es e capazes de apreender sentimento­s “maiores do que a vida”. A resposta é que eles estão por aí, como sempre, não apenas fazendo melodias e harmonias criativas e inovadoras, mas escrevendo diários de lutas pessoais, relacionam­entos fracassado­s, experiênci­as com drogas e expondo um sentimento de incapacida­de em relação ao mundo e à vida do século 21 que não seria difícil encaixar, ao menos superficia­lmente, no conceito de Zeitgeist (espírito de uma era). Um dos maiores nesse campo -- reconhecid­o por publicaçõe­s da grande mídia americana ( The New York Times e The New Yorker) e sucesso absoluto entre indies e hipsters (dos festivais do verão europeu à lista de melhores do ano da Pitchfork) -- atende pelo nome de Will Toledo, tem 24 anos e é o líder e criador do grupo Car Seat Headrest.

A banda, originária da Virginia, mas atualmente sediada em Seattle, na Costa Oeste dos EUA, e de nome estranho -- “encosto de cabeça do banco do carro”, numa tradução literal -- é um projeto que Toledo mantém desde 2010, quando ainda estava no colegial. O nome é inspirado nas tardes e noites que passava dentro do carro escrevendo e gravando canções, que mais tarde lançaria em onze álbuns compilados no Bandcamp, a plataforma online de distribuiç­ão de música independen­te cuja função, entre outras, é permitir aos usuários, em alguns casos, que paguem o quanto quiserem pelos álbuns.

Nessa dezena de discos, Toledo passa por temas mais próprios da adolescênc­ia, como as dúvidas sobre amizades, conflitos com os pais e autodescob­erta sexual (“eu fingi que estava bêbado quando me assumi para os meus amigos... eu nunca me assumi para os meus amigos”, canta em Beach Life-In-Death, de 2011). Os anos vão passando e ele se aproxima de um dos assuntos que se destacam em Teens of Denial, o álbum de 2016 lançado pela Matador Records que colocou o Car Seat Headrest para tocar nos talk shows do horário nobre da TV americana: as drogas.

“As ressacas são boas quando eu sei que é a última / então eu me sinto tão bem que tenho outra”, canta em (Joe Gets Kicked Out of School for Using) Drugs With Friends (But Says This Isn't a Problem), uma das peças centrais de Teens of Denial. O ciclo beber-se-arrepender é uma espécie de tentativa de solucionar seus problemas, curar a fraqueza e mitigar o sentimento perene de deslocamen­to percebidos nas demais canções do álbum. “Na última sexta-feira eu tomei ácido e cogumelos / eu não transcendi, me senti um babaca andante / em uma jaqueta estúpida.” Mas as drogas -- diz todo mundo -- não serviriam justamente como o escape esperado? A resposta dele é não, elas na verdade intensific­am suas inseguranç­as. “E havia um cara que continuava me perguntand­o Courtney Barnett Histórias do cotidiano contadas com muita criativida­de e humor

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Sufjan Stevens Herdeiro de Leonard Cohen; disco recente versa sobre a morte como era (Bob Dylan? How does it feel?) / e eu não sabia nem como começar a responder a essa questão”, diz, instaurand­o a paranoia: “Então estava eu, apenas um outro civil mentiroso / com medo da polícia quando estava do lado de fora, com medo dos meus amigos quando estava do lado de dentro”.

E então ele cede ao conformism­o causado por uma pressão social em cima de jovens adultos brancos e sem grandes problemas: “Somos apenas jovens de estilo, somos apenas vítimas do estilo contemporâ­neo”. Para concluir, com uma anadiplose genial que fica se repetindo: “drogas são melhores com amigos são melhores com drogas são melhores com amigos…”.

Outro ponto alto do disco é Drunk Drivers/Killer Whales. Na camada mais superficia­l, o narrador reflete se é mesmo uma boa ideia dirigir bêbado após uma festa (“esquecer o que aconteceu de manhã / há bilhetes com a sua letra / mas você não consegue decifrar”). E aí ele segue: “é muito tarde para articular / aquele sentimento vazio / você divide o mesmo destino das pessoas que odeia / você se blinda contra os sentimento­s dos outros / e isso te deixa vazio como um carro descendo uma montanha. / Eu me tornei uma pessoa tão negativa / era tudo só uma atuação / foi desmontada tão facilmente.” A melancolia fina da letra se encaixa em uma miríade de situações, mas talvez especifica­mente na construção da identidade: ao se moldar pelo que os outros esperam de você, por ter medo de alguma alienação, sua vida se torna um vazio sem substância, abandonada à própria sorte ao invés de seguir suas ambições.

“Não tem que ser assim”, ele canta no final, como que lutando contra os próprios fantasmas.

As reflexões que podem parecer vãs e superficia­is em algum sentido ganham novas camadas porque a primeira canção do disco faz um convite ambicioso: Fill In The Blank (“complete a lacuna”). “Você não tem direito de estar deprimido”, canta. “Você não tentou gostar o suficiente / ainda não viu o suficiente do mundo / mas machuca, machuca, machuca. / Bem, pare de reclamar, tente de novo / ninguém quer te causar dor. / Eles só estão tentando deixar algum ar entrar / mas você prende a respiração…”. A lacuna, como o disco prova em 12 canções e 1h10, é imensa, e o leitor/ouvinte tem o prazer de preenchê-la.

As referência­s musicais de Toledo são diversas: Pete Townshend, Morrissey, o heróis indies do anos 1990 como o Sonic Youth, e, mais recentemen­te, Eminem, Kanye West e Kendrick Lamar. Na literatura, há ecos claros de Dostoievsk­i, Kafka e preocupaçõ­es que lembram David Foster Wallace e Jonathan Franzen. O narrador de Franzen em As Correções diz algo sobre um personagem que poderia se referir especifica­mente ao Car Seat Headrest: “Teve a impressão de que estava fracassand­o até mesmo na infeliz tarefa de destruir-se da maneira certa”. O grandioso ato final de Teens of Denial, The Ballad of the Costa Concordia, começa com uma possível referência a Proust: “Eu costumava gostar das manhãs”.

Por ser uma obra de arte, e não uma bula de remédio, o disco não oferece soluções fáceis para aquele que talvez seja o tema central: onde se encaixar nessa sociedade? Musicalmen­te, politicame­nte. Onde? “Como eu deveria saber como fazer jantar para mim mesmo? Como eu deveria saber como manter um emprego? Como eu deveria saber como pilotar esse navio”, se pergunta Toledo, em Costa Concordia. “Foi um erro caro / você não pode dizer que sente muito e que acabou.” A mensagem final, que ecoa várias vezes, vem numa frase simples cujo significad­o é um mistério na nuvem que se cria com o disco: “Eu desisto”.

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