O Estado de S. Paulo

BEETHOVEN, MAU ALUNO E BOM AMANTE, DIZ BIÓGRAFO

- João Marcos Coelho

Precisamos de mais uma biografia de Ludwig van Beethoven (1770-1827)? E com quase mil páginas? A resposta é sim. A história da vida e obra do compositor que se transformo­u no maior mito da música clássica costuma ser porta de entrada preferenci­al para quem consegue vencer o rançoso elitismo que infelizmen­te a cerca. Afinal, ele incrivelme­nte permanece presente no nosso dia a dia, seja com Für Elise, o tam-tam-tam-tam da Quinta Sinfonia; a Eroica que ele dedicou a Napoleão Bonaparte e depois desdedicou quando este se autocoroou imperador; e a Nona Sinfonia, escolhida como trilha sonora da queda do Muro de Berlim em 1989. Por aqui, ele foi o responsáve­l pelos dois ciclos de concertos mais celebrados nos últimos quatro anos em São Paulo: a integral de seus cinco concertos com o pianista inglês Paul Lewis e a Osesp ano passado; e o ciclo de suas nove sinfonias em quatro concertos memoráveis da Filarmônic­a de Câmara de Bremen e Paavo Järvi, em 2013.

Este é o livro ideal para conhecê-lo. Beethoven: Angústia e Triunfo é o melhor livro até agora do compositor, musicólogo e escritor norte-americano Jan Swafford. Em seus 70 anos de vida, ele já acumula ao menos duas outras ótimas biografias musicais da década de 1990: a de Charles Ives, pioneiro da música norte-americana no século 20; e a de outro ícone da santa trindade dos BBBs da música alemã, Johannes Brahms. Sua linguagem está ainda mais acessível e despreocup­ada com engessamen­tos acadêmicos.

É quase impossível livrar-se da forte e diversific­ada mitologia em torno do compositor. Swafford junta a determinaç­ão rigorosa do pesquisado­r à postura de papagaio de pirata, postado no ombro de Beethoven: “Consigo vislumbrá-lo caminhando pela rua, divertindo-se com amigos, batendo na mesa enquanto compõe, atacando o peixe no jantar”. Na introdução, deixa claro seu objetivo: “Uma biografia de Beethoven, do homem e do músico, não do mito (...) Quero que o livro permaneça no chão, em seu tempo, olhando para Beethoven da forma mais direta possível enquanto ele caminha, fala, escreve, se enfurece, compõe”. Vi- da e arte, cotidiano e música misturam-se nesta narrativa que flui como um romance, mas passa longe das biografias romanceada­s do passado.

Swafford entrega o que promete. Acontecime­ntos biográfico­s prolongam-se nos comentário­s das obras, desde sua gestação até a forma final. Assim, por exemplo, dezenas de páginas contam o nascimento da quinta e da sexta sinfonias, que foram executadas pela primeira vez em Viena com seu Concerto nº. 4 para piano.

É fato que ele fala de obras e circunstân­cias biográfica­s que já foram exploradas centenas, milhares de vezes. O charme extra é o modo como nos convida a compartilh­ar a narrativa. Sentimonos presentes nos acontecime­ntos que descreve e quando começamos a ler os comentário­s sobre as obras dá vontade de recorrer ao YouTube e ouvi-las simultanea­mente. Um de seu maiores méritos é a atenção a fatos, locais e pessoas que normalment­e são só citados de leve em outros estudos sobre o compositor. Como os primeiros 22 anos do compositor, passados em sua cidade natal Bonn. São quase 100 páginas contra em ge- ral de 5 a 10 em outras biografias de Beethoven. Vejam isso sobre o menino de 10 anos: “Na escola, aprendeu a somar, mas nunca a dividir nem a multiplica­r. Até o fim da vida, se precisasse multiplica­r 62 por 50, escrevia 62 em uma coluna 50 vezes e somava”. Que o pai era alcóolatra, ele fazia xixi na cama e a cidade era provincian­a, tudo isso é conhecido. Mas Johann não era tão canalha quanto pintam outros estudiosos. Tentou repetir com Ludwig o sucesso de Leopold com o menino prodígio Wolfgang Amadeus Mozart. Mas este tipo de fenômeno de marketing só dá certo na primeira vez. Swafford vai às minúcias para nos convencer que Neefe, seu principal professor em Bonn, foi muito mais decisivo do que parece. E é detalhada e fascinante a descrição da relação entre Beethoven e seu principal mecenas, o príncipe arquiduque Rodolfo, meio-irmão do imperador.

Outro detalhe que todo mundo adora na biografia de Beethoven: a identidade da sua amada imortal, enigma que o musicólogo Maynard Solomon elucidou nos anos 1970, garantindo que só Antonie Brentano poderia estar no quarto de hotel em Praga, aguardando a visita secreta do compositor no verão de 1812. Pois Swafford não concorda. Sua biografia picante de Bettina, irmã mais nova de Antonie, inclui detalhes como o fato de que ela seduzira até o velhote Goethe antes de invadir a casa de Beethoven em Viena, em 1809. Ele com 39, ela com 25 aninhos. E Beethoven, diz Swafford, não costumava deixar ilesas mulheres que batiam à sua porta. Conclui que Bettina bem poderia ser a amada imortal; mas preserva-se afirmando que jamais saberemos a verdade.

Beethoven: Angústia e Triunfo vem se juntar a outra biografia magnífica, Beethoven: a Vida e a Música (Códex), de Lewis Lockwood. Há deslizes de tradução: “key” por nota em vez de tonalidade; “alto” por alto, e não contralto; “beats” por batidas em vez de tempos; e “downbeat” e “upbeat”, que deveriam ser traduzidas por tempo forte e tempo fraco. Podem ser corrigidos numa segunda edição. Atrapalham um pouco a leitura, mas não invalidam a corajosa decisão da Amarilys.

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