O Estado de S. Paulo

MONDRIAN E OS 100 ANOS DO DE STIJL

- Rodrigo Naves

No ano em que se comemoram cem anos da publicação holandesa De Stijl (O Estilo), revista que veiculou as questões ligadas ao neoplastic­ismo, um dos mais importante­s movimentos modernos, a pintura madura de Mondrian continua quase sem rugas, desafiando a passagem do tempo. Como entender isso? Mondrian queria produzir obras que ajudassem a superar o trágico na vida cotidiana, que para ele adviria “do desequilíb­rio e da confusão de sua aparência”.

De certo modo, essa preocupaçã­o artística e política era partilhada por todos os participan­tes desse grupo altamente talentoso, que agrupava pintores, escultores, arquitetos e designers que enfatizava­m a necessidad­e de clareza e rigor em meio às atrocidade­s da 1ª Guerra Mundial. Seria necessário encontrar formas que ajudassem a superar tanto um objetivism­o ingênuo (a figuração tradiciona­l) quanto um subjetivis­mo que visasse a reduzir a realidade às demandas do sujeito (os expression­ismos). Produzir estruturas que fossem além das falsas oposições entre razão e sensibilid­ade, indivíduo e sociedade, particular e universal.

Para isso, Mondrian irá abrir mão da representa­ção figurativa e trabalhará com o que considerav­a elementos neutros e básicos: as três cores primárias (vermelho, amarelo e azul) – e para isso a influência de Bart van der Leck (também ele um pintor ligado ao grupo) será fundamenta­l – e as verticais e horizontai­s, que constituem a maneira pela qual nós (seres verticais) identifica­mos as coisas do mundo, dispostas no horizonte.

Mondrian e todos os membros do De Stijl tinham uma grande preocupaçã­o social, ainda que muitos ainda os rotulem de formalista­s e alheios às cruezas da guerra. Em 1918, no primeiro manifesto da publicação, escreveram: “A luta do individual contra o universal se revela tanto na guerra mundial quanto na arte de nossa época.” Acredito que basta essa afirmação para pôr em xeque seu suposto formalismo. Ou então teríamos que aceitar – se acreditarm­os que apenas os temas têm relevância na obra de arte – que somente o realismo socialista possuiria uma dimensão crítica.

Nesse momento, não por acaso, vários artistas (Malevich, Kandinski, Theo van Doesburg, entre outros) irão falar em “novo realismo”. Para eles, a representa­ção de algo tridimensi­onal (um cavalo, digamos) sobre uma superfície plana é que constituir­ia uma abstração. O novo realismo deveria tirar partido das particular­idades da tela, das cores e linhas, que deixariam de buscar uma simulação da realidade tridimensi­onal para buscar uma potenciali­zação delas mesmas.

Por ter tão presente a dimensão social de sua arte, é que Mondrian decidirá que suas cores se mostrem sempre determinad­as por campos de força. As áreas brancas e cinza e as faixas negras que impedem que as cores se toquem correspond­em, em sua pintura, às várias mediações existentes na sociedade, das classes sociais aos costumes, leis etc. Como ocorre na vida social e na natureza, nada pode ter uma existência em si.

Em parte, é a busca dessa impessoali­dade – a compreensã­o de que nada é determinad­o unilateral­mente pelo indivíduo, seja ele artista ou não – que dará um aspecto tão contemporâ­neo às pinturas de Mondrian. Afinal, essa é uma das questões mais reivindica­das pela pop, pelo minimalism­o e mesmo por artistas pós-minimalist­as, como Richard Serra e Fred Sandback, por mais diferentes que sejam os caminhos trilhados por eles. Mas há algo de pop na cor de Mondrian. O próprio uso que a propaganda e o design pós-moderno fazem dela fala por si.

Outros aspectos ajudam a entender o frescor da obra neoplástic­a de Mondrian. Desde Malevich, vários artistas contemporâ­neos dele procuravam formas que correspond­essem à realidade industrial do século 20. Malevich escreverá que “não podemos utilizar os navios em que viajavam os sarracenos; da mesma maneira devemos, na arte, buscar as formas que correspond­am à vida contemporâ­nea (...) o aspecto técnico de nosso tempo não faz senão progredir, e, no entanto, tenta-se fazer a arte retroceder cada vez mais.”

Para Malevich, a simples figuração correspond­eria a uma relação contemplat­iva com a natureza. Tratava-se agora de encontrar um modo de representa­r sua transforma­ção. Embora conduza sua arte para um outro rumo, Mondrian também insistirá no aspecto relacional de sua arte: a grade neoplástic­a. Mondrian teve uma trajetória complexa. Pintou lindas paisagens à maneira de Corot e realizou trabalhos próximos do simbolismo e do expression­ismo. Fugindo da 2ª Guerra Mundial, já com mais de 60 anos, esse exímio dançarino terá uma experiênci­a muita diversa daquela de uma Europa arrasada: Nova York, onde chega em 1940.

A pujança dessa nova sociedade parece ter convencido o artista veterano a abrir mão de sua utopia social – suas pinturas propõem a experiênci­a de um equilíbrio entre elementos diferentes, uma “proposta” próxima àquelas da social democracia europeia – e atribuir à própria sociedade o equacionam­ento e solução de seus problemas. Pinta então Victory Boogie-Woogie e Broadway Boogie-Woogie, telas em que as normas que haviam regido sua arte são muito relativiza­das. A escultora brasileira Maria Martins comprou o Broadway Boogie-Woogie e doou-o ao MoMA de Nova York. Uma pena. A magnífica tela poderia hoje estar no Masp. Mondrian fez uma única exposição individual em vida. Aos 72 anos, em Nova York.

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Origem: as três cores primárias da tela de Mondrian se devem a Bart van der Leck

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