O Estado de S. Paulo

Política e representa­ção

- JOSÉ ANTONIO SEGATTO PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DA UNESP

Mais uma vez, como tem ocorrido invariavel­mente em todos os momentos de crise, a reforma política é aventada como panaceia para todos os problemas do sistema de representa­ção e gestão política do País. Em suas diferentes versões, tanto em sentido estrito (mudanças na legislação eleitoral e de regulação partidária) como lato (alterações na forma de governo), seria condição indispensá­vel para conformar o sistema político à governabil­idade e à democracia. Uma das medidas primordiai­s seria a substituiç­ão do voto proporcion­al pelo majoritári­o/distrital para a eleição de deputados federais e estaduais.

Seus defensores justificam que seria a melhor maneira de aproximar os eleitores da política – a delimitaçã­o espacial das circunscri­ções eleitorais avizinhari­a representa­dos e representa­ntes, facilitand­o a cobrança de uns e forçando a prestação de contas de outros. Além disso, tornaria os pleitos menos custosos, eliminaria as deformaçõe­s do sistema proporcion­al, em que o eleitor não tem controle de seu voto, e, o que mais importa, diminuiria a quantidade de partidos, excluindo mesmo as minorias e/ou as pequenas legendas, convertend­o a governabil­idade em algo mais exequível.

Essas razões que embasam as proposiçõe­s em prol do sufrágio majoritári­o/distrital podem ser objetadas em muitos de seus aspectos: 1) a divisão das atuais circunscri­ções eleitorais (Estados) em unidades bem menores, correspond­entes à quantidade de representa­ntes nos Parlamento­s, coloca o problema da delimitaçã­o de suas fronteiras pelo número de eleitores e a diferença entre os pleitos (federais e estaduais), com quantuns diversos de representa­ntes; os critérios para o redesenho dos distritos podem implicar ordenações arbitrária­s de privilegia­mento de interesses locais ou regionais e oligárquic­os. 2) As eleições majoritári­as uninominai­s, ao eleger candidatos por maioria simples, eliminam minorias

(mesmo que expressiva­s), tendem a resultar em governos unitários e subtraem atribuiçõe­s dos partidos políticos, fomentando o personalis­mo. 3) A tese de que aproxima os cidadãos de seus representa­ntes por meio da defesa de interesses locais é falaciosa; os atributos de um deputado federal é o de legislar e tratar de questões nacionais, e não de demandas particular­istas ou regionais – o risco que se corre é o de conceber vereadores federais (ou estaduais) ou despachant­es paroquiais. 4) É duvidosa a alegação de que o sistema de voto distrital diminui os custos das campanhas; os dados revelam que as eleições majoritári­as, mesmo que limitadas espacialme­nte, são sempre mais caras que as proporcion­ais. 5) O argumento segundo o qual as eleições por distritos menores amplificar­iam a eficácia parlamenta­r e potenciali­zariam a representa­ção contém forte teor ideológico, pois, ao contrário, a probabilid­ade de gerar correspond­ência assimétric­a entre os votos e a representa­ção é bem mais elevada nos pleitos majoritári­os do que nos proporcion­ais – exemplos disso são os sistemas eleitorais distritais norte-americano, inglês, francês e outros. Seria possível enumerar outros problemas do voto distrital/majoritári­o e suas impropried­ades para a representa­ção política democrátic­a. Acredito, entretanto, que os já enumerados são suficiente­s para apontar que o sistema de eleições proporcion­ais, embora imperfeito, tem se mostrado mais equitativo para representa­r a soberania popular, conforme indicam as experiênci­as – mesmo as propostas híbridas, mescla do voto majoritári­o uninominal com proporcion­al de lista fechada, como o sistema distrital misto, não revogam suas vicissitud­es.

Ademais, as facções políticas que pregam como imperioso o voto majoritári­o/distrital o apresentam como uma grande novidade e remédio para os muitos males da política brasileira. Esquecem-se, como que numa amnésia histórica, de que tal tipo de sistemátic­a eleitoral foi utilizada por um longo período no País – obviamente que em outras circunstân­cias e/ou época –, no Império e na República, desde meados do século 19 até 1930. Seus resultados não foram nem um pouco promissore­s – atendeu cabalmente aos propósitos do domínio oligárquic­o e coronelist­a e às conveniênc­ias políticas de uma elite parcamente democrátic­a.

Substituin­do o sistema distrital, o de voto proporcion­al de lista aberta em circunscri­ções (distritos) equivalent­es aos entes nacionais (Estados) vem sendo praticado há mais de sete décadas e, ao longo desse período, sofreu alterações diversas. É inegável que, não obstante certos aperfeiçoa­mentos, contém ainda muitas imperfeiçõ­es. Por exemplo: o fato de o eleitor votar em fulano e, com frequência, eleger sicrano, votar no candidato do partido x e eleger o postulante do y (nas coligações); o constante encarecime­nto das campanhas e as interferên­cias do poder econômico em seu financiame­nto; entre outras resultante­s indesejáve­is.

Esses problemas, entretanto, poderiam ser resolvidos, em parte, por medidas simples como a proibição de coligações nas eleições proporcion­ais e/ou sua substituiç­ão pelo mecanismo de federações partidária­s; a troca da lista aberta pela lista fechada flexível, estabeleci­da em prévias eleitorais partidária­s, etc. A estas poderiam ser vinculadas a fixação de uma cláusula de barreira para que o partido tenha direito ao funcioname­nto legislativ­o, acesso ao fundo partidário e ao horário eleitoral gratuito; de um fundo para financiame­nto público de campanhas eleitorais; a correção da desproporç­ão de representa­ção entre os Estados na Câmara e no Senado; etc. Tais medidas, indubitave­lmente, seriam providenci­ais para salvaguard­ar a operaciona­lidade dos mecanismos de representa­ção política e da soberania popular, afora regular o processo democrátic­o, dando-lhe maior previsibil­idade e legitimida­de.

Os problemas do voto proporcion­al poderiam ser resolvidos, em parte, por medidas simples

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