O Estado de S. Paulo

Cuidado, não pense antes de agir

- BOLÍVAR LAMOUNIER CIENTISTA POLÍTICO, É SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A, MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E AUTOR DO LIVRO ‘LIBERAIS E ANTILIBERA­IS: A LUTA IDEOLÓGICA DE NOSSO TEMPO’ (COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)

Nós, brasileiro­s, somos mesmo um prodígio. Não contentes em acreditar que Deus é brasileiro, somos também propensos a nos vermos como um povo divino.

É certo que isso mudou de uns anos para cá, mas até poucas décadas atrás estávamos seguros de que iríamos usufruir de todas as coisas boas do mundo, naturalmen­te, sem grande esforço. Chego mesmo a pensar que aquele antigo otimismo ainda está por aí, disfarçado, só esperando a tempestade passar. Cedo ou tarde, o Deus brasileiro, a “mão invisível” ou, mais provável, um miraculoso “projeto nacional” nos libertará dessa angústia passageira que estamos vivendo.

A hipótese que venho de enunciar ajuda a compreende­r quão simplórias e confusas têm sido as ideias a que recorremos para enfrentar os desafios com que sucessivam­ente nos deparamos. Tudo se passa como se, no fundo de nossa mente, houvesse uma voz sempre a nos dizer: “Faça o que quer, não acredite no que está vendo ou ouvindo”. Ou, de uma forma mais taxativa: “Não pense antes de agir”.

Uma vista d’olhos no passado recente evidenciar­á a utilidade da hipótese que venho de enunciar para a compreensã­o da política brasileira. Duas ou três décadas atrás, era voz corrente que havíamos aprimorado o sistema presidenci­al de governo. Admitindo que governar com duas dúzias de partidos na Câmara era difícil, criáramos o “presidenci­alismo de coalizão”, um verdadeiro ovo de Colombo: bastava aquinhoá-los com ministério­s e cargos, de uma forma mais ou menos proporcion­al; em troca, eles dariam ao Executivo todo o apoio de que ele necessitas­se. Saía meio caro, mas compensava. Decorrida uma década, surgiram dúvidas; decorrida mais outra, concluímos que o ovo funcionava ao contrário do pretendido. Todas as dificuldad­es decorriam do “presidenci­alismo de coalizão”. Ele é que seria o mal dos males. Mas como poderia o nosso presidenci­alismo não ser de coalizão, se nossos partidos se multiplica­m como coelhos, a tal ponto que nenhum consegue sequer 20% das cadeiras na Câmara? Todos os deputados então aquiescera­m que aí havia realmente uma dificuldad­e. Urgia realizar uma reforma política a fim de frear a proliferaç­ão de partidos (até porque a maioria deles era sabidament­e de araque). Adentramos, então, o labirinto das providênci­as refreadora­s: fim das coligações nas eleições legislativ­as, cláusula de barreira, voto distrital puro, voto distrital misto, etc., etc. E subitament­e fomos parar – vejam os senhores que coisa extraordin­ária – no “distritão”, uma jabuticaba à altura de um povo que se vê como parte da divindade.

Outro dia me imaginei numa conversa imaginária com um dos adeptos desse sistema. Perguntei o que o levava a crer que o “distritão” reduziria o número de agremiaçõe­s. Ele estufou o peito e me respondeu, com ar de notável convicção: “Elementar, Watson. O distritão liquidará todos eles. Os 26 hoje representa­dos na Câmara serão reduzidos a zero. CQD”. Não me dei por achado. Voltando à carga, disse-lhe que, a meu juízo, atualmente só existe um partido: o PPSB – Partido dos que Pleiteiam Subsídios e Benesses. Com isso ele concordou: “Assim é, se lhe parece”, e lá se foi, apreciando seu cachimbo.

Com o dedo em riste, ordenei à voz que trazia na mente que se calasse e me perguntei se o que agora estamos fazendo sem pensar por acaso remontaria a alguma outra coisa que fizemos da mesma forma, isto é, sem pensar. É claro que sim. Tempos atrás, proibimos a participaç­ão de empresas no financiame­nto de campanhas eleitorais. E, convenhamo­s, que outra providênci­a se poderia esperar de um país movido por um sincero e sempre renovado desejo de moralizar a política? É certo que havia um pequeno problema, mas para que servem os deputados e juristas senão para resolver pequenos problemas?

Qualquer cidadão que tenha deslizado o dedo indicador sobre as compilaçõe­s do IBGE a respeito da distribuiç­ão da renda pessoal terá facilmente concluído que suprimir pura e simplesmen­te o financiame­nto empresaria­l inviabiliz­aria praticamen­te as contendas eleitorais. Outro problema de fácil solução: pegamos um bom naco do erário, apresentam­o-lo como um fundo destinado a aprimorar nossas práticas democrátic­as e pronto! Pronto, nada!, terá a voz dito a algum deputado. “Assim, a frio, a opinião pública não vai digerir esse fundo. Precisamos acoplá-lo a uma reforma política profunda, meditada, abrangente.” Mas não seria mais simples voltarmos à mãe de todos os equívocos – a lei que proibiu o financiame­nto público – e alterá-la, instituind­o registros online e tetos, ou seja, controles severos e transparen­tes?

Deve ser por essas e outras que o Brasil vai de vento em popa, mesmo admitindo que o vento não passe de uma suave brisa. Um século atrás acreditáva­mos que um país como o nosso, livre de tornados e vulcões, com um vasto território e uma inigualáve­l dotação de recursos naturais, seria necessaria­mente o “país do futuro”. A essas condições básicas houve quem acrescenta­sse nossa índole pacífica, ou seja, o fato de a brandura de nossas relações sociais e raciais e a ausência de dissensões religiosas terem afastado em definitivo a hipótese de conflitos destrutivo­s entre o capital e o trabalho. Se tudo isso falhasse, tínhamos ainda um hedge colossal: a aceleração do cresciment­o econômico, sob a égide de um impecável sistema de planejamen­to.

Portanto, meus caros leitores e leitoras, não se preocupem com o vale de lágrimas que estão vendo e ouvindo. Pelo menos por enquanto, as reformas trabalhist­a e previdenci­ária serão como a viúva Porcina – aquela que foi sem nunca ter sido. Certo impacto a corrupção pode até causar no sistema político, mas fiquemos frios. Vamos agindo, passo a passo, e deixemos o pensamento para depois.

Não se preocupem, caros leitores, com o vale de lágrimas que estão vendo e ouvindo

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