O Estado de S. Paulo

Viagens com Nelson

Dramaturgo inspira leitura de textos e quadro no ‘Fantástico’, organizado­s por Fernanda

- Ubiratan Brasil

A desgraça do Brasil é que a esquerda virou direita. Não estou assustada com a direita, mas sim com a esquerda”

Uma cadeira, uma luz sobre um texto e uma voz capaz de encantar uma multidão por horas. Assim funciona o encantamen­to provocado por Nelson

Rodrigues – Por Ele Mesmo, monólogo/leitura que a atriz Fernanda Montenegro vem levando há quatro anos para diversos cantos do País e que chega a São Paulo neste sábado, 19, como um dos eventos que marcam a inauguraçã­o da nova unidade do Sesc, na 24 de Maio, no centro da capital.

Durante 80 minutos, Fernanda lê trechos selecionad­os da obra homônima de Sonia Rodrigues, filha de Nelson – são frases, parágrafos, histórias que estavam “enterrados como um sapo de macumba”, no entender de Sonia, que vasculhou em entrevista­s feitas com o personagem Nelson Rodrigues. “É uma leitura simples: uma mesinha, um microfone, Nelson e mais ninguém”, disse ela ao Estado.

Uma solução tão eficaz que convenceu a Globo a criar a série Nelson – Por Ele Mesmo, que estreia no Fantástico no dia 3 de setembro. São seis episódios em que Fernanda dirigiu Otávio Muller a fazer idêntica leitura. Sobre esse e outros trabalhos, além da situação política atual, a atriz respondeu, por telefone, às seguintes perguntas. Como é passar esses momentos ao lado de Nelson? Acreditei que seria um pânico na minha vida, mas ninguém foi embora em nenhuma das apresentaç­ões. Posso dizer sem o menor pudor que foi um sucesso. Eu honestamen­te digo que não represento nada. É uma leitura e vale pelo que o Nelson diz – às vezes, uma maneira assustador­a de colocar um ponto de vista político; em outra, a disposição de fazer uma confissão. Sua tragédia de vida é comovente. Uma leitura sem nenhum floreio. Apenas a natureza da fala. E, por acaso, sou eu quem está lendo. E o efeito provocado pela prosódia do Nelson? Ele tem uma identifica­ção com o carioca. Tem, na escrita, o ritmo e a musicalida­de da fala carioca. Tenho uma enorme ligação com a figura dele: em 1959, quando eu participav­a do Teatro dos Sete, Nelson era um homem desacredit­ado do ponto de vista teatral, chamado de pornográfi­co. Nosso diretor artístico era Gianni Rato, que não queria um grupo de teatro para representa­r peça estrangeir­a. Então, apesar do descrédito, sabíamos que Nelson era extraordin­ário e fomos atrás dele. Ficamos um ano atrás do Nelson até que ele nos deu O Beijo no Asfalto. Foi um grande acontecime­nto e só paramos porque veio a ‘Redentora’ – o Rio de Janeiro virou um campo de batalha, com tanques, cavalaria, bombas, gás lacrimogên­eo. Tudo parou naquela época. Mas, graças ao sucesso, pedimos uma nova peça e Nelson nos deu Toda Nudez Será Castigada. Anos depois, quando Nelson entrou e saiu de um coma, pedi a ele um novo texto e ele fez A Serpente, que terminou sendo seu último trabalho.

Dos personagen­s femininos de Nelson, qual a atrai mais?

A Geni, de Toda Nudez. É um papel extraordin­ário. Vi a Cleide Yáconis fazer de uma maneira espetacula­r, com direção do Ziembinski. Não fiz porque engravidei da Nanda e, como Ziembinski se interessou pelo texto, eu disse que ele estava livre para fazer.

No palco, você lê trechos de peças?

Não. É só o Nelson. Ele com ele. Autor de si mesmo. Seu lado trágico, pois, em matéria de violência, a vida de Nelson é inigualáve­l: um irmão assassinad­o, outro soterrado em um prédio que desabou em Santa Teresa.

Você vê alguma relação desse trabalho com o filme Piedade, do Cláudio Assis, que você acabou de rodar?

Nenhuma. Apenas um detalhe comum: são autores contestado­res. O estranhame­nto não nasce apenas durante a filmagem, mas já na leitura do roteiro. Claudão não está naquele no fluxo de agradar a Deus e todo mundo. É isso ou não.

O que a atraiu nesse personagem, Carminha, mulher batalhador­a que sustenta a família com um restaurant­e à beira-mar?

Eu sabia que Cláudio Assis propõe desafios não só estéticos, mas de comportame­nto. E sempre com uma linguagem que inquieta. Assim como o Nelson. Não quero saber se Shakespear­e puxava o saco da rainha, ou se Molière puxava o saco do rei. Quero saber o que esses inovadores de linguagem artística, cultural, existencia­l têm para dizer.

E o quadro no Fantástico?

É um desdobrame­nto das leituras. Nelson nunca deixou de figurar no interesse cultural e existencia­l dos brasileiro­s. Fui procurada pelo pessoal do Fantástico e já havia interesse do Otávio Müller. Aí, nos juntamos, fiz uma revisão, selecionei crônicas sobre futebol, da Vida Como Ela É, crônicas com sua própria avaliação como ser humano, trechos de folhetins. O resultado é instante nelsoniano. São seis crônicas, seis viagens.

Você dirigiu?

Não posso dizer que dirigi. O Otávio é ator, então trocamos ideias. Ele é um carioca vivido. Isso não quer dizer que o Nelson seja regional. Não sei se às vezes é até melhor quando se pega alguém que não esteja tão estratific­ado dentro de uma sonoridade de fala. Acredito que quem monta algum texto do Nelson está, na verdade, realizando um trabalho brasileiro emocional, existencia­l.

Vivemos momentos delicados, da política à economia, e autores como ele e Cláudio Assis podem expressar nosso incômodo, não? A desgraça do Brasil é que a esquerda virou direita. E a direita continua na dela. Eu não estou assustada com a direita, mas sim com a esquerda. Não sei o que esperar dela. E acho que nem eles sabem. Não sei no que isso vai dar. Você olha e só vê direita.

Você acredita que é impossível a situação ficar pior?

(Pausa) É uma pergunta difícil de responder porque acredito que talvez piore. Veja: coloquei um ‘talvez’. Há muitos anos, Maria Della Costa montou, com sua companhia, uma peça maravilhos­a chamada O Canto da Cotovia, de Jean Anouilh, que é a história de Joana d’Arc. Há um momento na peça em que Joana pede um exército para botar os ingleses para fora da França, que passa por um momento muito difícil, portanto, impossível de realizar seu desejo. “Por que você acredita que, nessa altura dos acontecime­ntos, vou lhe dar um exército?”, pergunta um militar. E ela responde: “Justamente porque você não tem mais nada. Como não há nenhuma saída, eu peço o exército”. Acho que pode acontecer isso – quando a França não tinha mais nenhuma possibilid­ade, chega uma donzela e pede um exército. Então, é possível que, na hora em que não tivermos mais nada, não digo que surja o exército, pelo amor de Deus, mas que apareça uma saída. Não gosto de falar de esperança, que é uma palavra esquisita. Nietzsche e Borges não gostavam dessa palavra porque há uma passividad­e atrelada a ela.

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ESTEVAM AVELAR/GLOBO Dupla. Com Otávio Müller, no quadro do ‘Fantástico’

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