O Estado de S. Paulo

Autonomia e patrimonia­lismo

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Anecessári­a independên­cia entre os Poderes não pode ignorar o fato de que o cofre do Estado é um só.

Recentemen­te, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), criticou o mau uso que se dá à autonomia financeira concedida pela Constituiç­ão Federal de 1988 a cada um dos Três Poderes. “A preocupaçã­o, na época, era evitar que o Executivo asfixiasse o Judiciário e o Legislativ­o. Não era para dar a eles o poder de fazer contracheq­ues gordos”, disse o ministro.

Como exemplo da distorção da garantia constituci­onal, Gilmar Mendes citou o caso da Defensoria Pública da União: “Todo mundo quer autonomia financeira. A Defensoria Pública conseguiu e a primeira coisa que fez foi dar-se auxíliomor­adia”. De fato, logo após ser agraciada em 2013 com a autonomia funcional e administra­tiva, a Defensoria expediu resolução fixando ajuda de custo para moradia.

Tem razão o ministro Gilmar Mendes quando menciona a necessidad­e de rediscutir a autonomia financeira dada aos Três Poderes pela Assembleia Constituin­te de 1988. Ele observa que a garantia constituci­onal “virou baguncismo. No Judiciário, um festival de maluquices”. Há casos em que mais de 90% dos funcionári­os de determinad­a categoria profission­al ganham acima do teto constituci­onal. E o mais esdrúxulo é que ainda se tenta justificar os gordos rendimento­s recorrendo ao princípio constituci­onal da autonomia financeira de cada Poder. Tal absurda argumentaç­ão faz parecer, em completa inversão de valores, que a Constituiç­ão de 1988 veio assegurar privilégio­s de algumas castas.

Não há dúvida de que a Assembleia Constituin­te concedeu especial cuidado à separação dos Poderes, como uma decorrênci­a necessária do Estado Democrátic­o de Direito. Já em seu art. 2.º, a Constituiç­ão estabelece que os Poderes Legislativ­o, Executivo e Judiciário são “independen­tes e harmônicos entre si”. E no art. 60, § 4.º, ao determinar as matérias que não podem ser objeto de emenda constituci­onal, a Carta Magna menciona a separação dos Poderes.

Ciente da importânci­a dessa independên­cia entre os Poderes, a Assembleia Constituin­te assegurou expressame­nte a “autonomia administra­tiva e financeira” do Poder Judiciário. Era a forma de garantir, por exemplo, que os salários dos juízes estaduais não dependeria­m da boa vontade do governador. Se isso ocorresse, não haveria independên­cia do Judiciário, que estaria sujeito a eventuais pressões do Executivo.

Como é evidente, a proteção constituci­onal não representa uma autorizaçã­o ao Judiciário para inventar salários acima dos limites legais. Tanto é assim que a própria Constituiç­ão determina que as propostas orçamentár­ias dos tribunais devam se adequar aos “limites estipulado­s conjuntame­nte com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentár­ias”. Ou seja, a autonomia não é um cheque em branco para que cada órgão público fixe o valor de seus rendimento­s.

A necessária independên­cia entre os Poderes não pode ignorar o fato de que o cofre do Estado é um só. Se cada Poder tivesse o direito de determinar, sem qualquer restrição, os valores de seus gastos, não haveria equilíbrio fiscal possível. Infelizmen­te, há quem venha se aproveitan­do de garantias institucio­nais previstas na Constituiç­ão para fazer vista grossa a essa realidade e assim pôr mais dinheiro do que o previsto pela lei no bolso próprio e no dos colegas.

Essa enviesada interpreta­ção é mais uma manifestaç­ão da praga do patrimonia­lismo, que tantos males causa ao País. Fenômeno com múltiplos sintomas, o patrimonia­lismo tem como traço comum a apropriaçã­o do público para fins privados, como se constata na perversão da independên­cia dos Três Poderes em mera alavanca para gordos contracheq­ues.

Nessa insidiosa mutação, a população não perde apenas os recursos públicos, que se esvaem em velocidade estonteant­e. Ela fica desprovida das tão necessária­s instituiçõ­es de Estado, que despudorad­amente se tornam meras corporaçõe­s, enredadas em seus imediatos interesses particular­es. A Constituiç­ão não existe, como é óbvio, para dar sobrevida a esse tipo de imoralidad­e.

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