O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal

O direito de papel

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Um livro não muda o mundo, muda pessoas e as pessoas mudam o mundo.

No dia 26 de agosto de 1789, os deputados franceses lançaram um dos grandes documentos da modernidad­e: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Era um vigoroso manifesto iluminista contra o Antigo Regime. Foi uma resposta ao cresciment­o dos movimentos sociais no verão de 1789, nas tensas semanas entre a queda da Bastilha, a onda de saques do Grande Medo e o fim dos direitos feudais (4 de agosto). Na semana que vem, o documento completa 228 anos.

Os artigos da Declaração demolem o prédio secular do Absolutism­o de Direito divino e da desigualda­de social pelo nascimento. Era um novo mundo, pelo menos no papel. Deputados homens, na maioria de origem burguesa, refizeram o mundo pela sua perspectiv­a. Quando uma voz dissidente e feminina, Olympe de Gouges, lançou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, foi parar na guilhotina. Sejamos justos: a guilhotina não era machista. A lâmina ignorou gênero: matou Danton, Robespierr­e, Luís XVI, Maria Antonieta, freiras carmelitas e Lavoisier.

O texto de 26 de agosto é fundaciona­l nas suas glórias e limitações. Suas ideias varreram a Europa e atravessar­am o oceano. A Revolução de 1789 resultou na tirania napoleônic­a, porém, curiosamen­te, foi Napoleão que difundiu muitos legados revolucion­ários, inclusive o sistema métrico decimal. Os ingleses se orgulham de não terem sido invadidos pelo corso, juntam a seu nacionalis­mo invicto as jardas, as libras e até “stones”.

Em 1948, a jovem ONU revisitou a Declaração. A Segunda Guerra Mundial ainda contabiliz­ava seus genocídios e a Guerra Fria estremecia Berlim. A Assembleia aproveitou o momento e organizou a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

É impossível discordar de uma única linha do texto. Ali está o melhor da humanidade como nós sonharíamo­s que ela fosse: tolerante, democrátic­a, igualitári­a e respeitado­ra das diferenças. Ali o Homo sapiens, na sua sangrenta trajetória de guerras e preconceit­os, deu uma pequena parada, respirou fundo e sonhou que as coisas poderiam ser de outra maneira. De muitas formas, o texto da ONU cumpre a origem da palavra dupla: o não lugar e o lugar bom. Se você nunca leu o texto de 1948, vale a pena consultá-lo como uma baliza de valores.

Meu alunos sempre questionam a validade de tais documentos. Do que adiantaria dizer que todos os homens são iguais e nascem livres, se por toda parte são desiguais e a maioria não é livre de forma metafórica ou prática? Qual o sentido de um papel diante do imperativo da força? O racista da Virgínia continua sua convicção canalha com ou sem o texto da ONU. O agressor de mulheres nunca leu Simone de Beauvoir. Se lesse, mudaria algo? O homofóbico responde a dramas pessoais internos que não serão transforma­dos com as obras completas de Freud em alemão. O mundo real e material, o mundo aqui e agora, de que forma um papel pode mudá-lo? A dúvida é pertinente e forte.

A pergunta original e anterior seria sobre o que muda o mundo. Como passamos de um ponto como a criminaliz­ação da homoafetiv­idade para uma celebração da parada gay? Como o pátrio poder jurídico perdeu a possibilid­ade de matar o filho como outrora? De que forma desaparece­u a tortura legal?

Robert Mandrou, em um clássico da minha área (Magistrado­s e Feiticeiro­s na França no Século 17 – Uma Análise de Psicologia Histórica), lançou uma ideia. Por que os tribunais executavam tantos feiticeiro­s e, de repente, em um prazo muito curto, pararam de condenar à fogueira pelo mesmo crime? Mais curioso: a legislação sobreviveu alguns anos a mais, a prática diminuiu ou desaparece­u.

Para Mandrou, ocorre um processo de transforma­ção das elites, no caso jurídicas. Autores racionalis­tas começam a indicar que a bruxaria é uma superstiçã­o e não uma realidade. Pessoas respeitada­s falam e escrevem que queimar pessoas é algo do passado. As escolas jurídicas vão incorporan­do os novos temas. Nos grandes centros, a influência é maior no começo. Os rincões vão recebendo aos poucos as novidades. De repente, os juízes entendem que a acusação de bruxaria é falsa e que a velha senhora precisa mais de cuidados médicos do que de exorcismos. Descartes chegou à aldeia. A Razão começa a triunfar. Sinal interessan­te: queimam-se menos bruxas a cada ano da segunda metade do século 17, todavia crescem os linchament­os populares. Assim, a muralha popular filtra mais Descartes do que a dos magistrado­s. O procedimen­to (aqui extrapolo muito Mandrou) acaba reforçando a convicção da elite jurídica: a crença em bruxas é algo típico da irracional­idade do povo. A crença na feitiçaria é superada pelos togados, o preconceit­o contra o povo não. Em alguns casos, como na Europa Oriental, o declínio da bruxa na aldeia assistiu a uma ascensão dos lobisomens. A modernidad­e é sempre dialética.

Mandrou foi criticado de muitas formas. Vamos abandoná-lo por enquanto. Não tenho nenhuma dúvida do papel inseminado­r das ideias, boas e ruins. Um livro, como já foi dito, não muda o mundo, muda pessoas e as pessoas mudam o mundo. Entendo o ceticismo. O livro mais influente de todo o Ocidente, a Bíblia, diz no Evangelho (ponto máximo na tradição cristã) que devemos amar uns aos outros. A história do Cristianis­mo nem sempre ouviu a máxima do Sermão da Montanha. Ora, se a Bíblia não deteve a violência e o ódio, um livrinho escrito por Leandro Karnal poderá fazê-lo? De novo, uma boa pergunta. Preciso voltar ao tema na próxima crônica. Bom domingo para todos vocês.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão vai completar 228 anos

DOMINGO, 20 DE AGOSTO DE 2017

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LEANDRO KARNAL E AOS DOMINGOS ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

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