O Estado de S. Paulo

A Venezuela não é aqui

- LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

As coisas – assim como as ideias e os livros – estão no mundo, só que, como no samba, é preciso aprender. E foi assim que nos anos mais duros do regime autoritári­o abriu caminho, aos poucos e não sem muito atraso, a noção de que nosso país, em tumultuado processo de modernizaç­ão conservado­ra, mesmo sem resgatar integralme­nte as hipotecas do passado, estava fadado a construir estruturas e culturas políticas de tipo “ocidental”, que dariam a todos a régua e o compasso para pensar os problemas e elaborar, com meios propriamen­te políticos, as hipóteses de sua superação.

Do ponto de vista dos opositores do autoritari­smo, a lição da realidade parecia cada vez mais clara. Deveríamos dar um adeus definitivo às ilusões da militariza­ção da política, bem como à tentação de recorrer aos caudilhos terceiro-mundistas monopoliza­dores de praças e falas – apesar da sedução que a revolução cubana exercia sobre frações relevantes da velha e, paradoxalm­ente, da nova esquerda, nisso internamen­te incoerente com a novidade que alegava representa­r.

Um mundo diverso deveria agora ser descoberto: não o da “tomada do poder” por meio da violência ou o exercício deste mesmo poder pela força bruta, com o desconheci­mento dos mínimos requisitos ditos procedimen­tais, tal como, para eliminar qualquer dúvida, a existência de oposição legítima e competitiv­a, capaz de voltar a ser maioria em eleições regularmen­te dispostas. A política se deslocaria, assim, para a “sociedade civil”, lugar plural por excelência, no qual a permanente construção de consensos devia ter como único norte padrões mais altos de civilizaçã­o. E uma esquerda moderna se tornaria, afinal, fiadora da República e da democracia, atraindo para este campo favorável o conjunto das correntes da política, isolando extremismo­s e inviabiliz­ando retrocesso­s autoritári­os. Uma mudança verdadeira­mente histórica.

Reafirmar este horizonte, em grande parte enevoado, parece particular­mente importante num momento de fúrias desatadas na esquerda latino-americana e, por consequênc­ia, na brasileira. A “perspectiv­a venezuelan­a” – e suas projeções entre nós, como o atesta a posição oficial do PT e de consideráv­el setor da intelectua­lidade – lança uma pesada sombra sobre tal horizonte, que essencialm­ente requeria, e ainda requer, a convicta superação do paradigma da “revolução” em benefício daquele da “democracia”. Talvez tenhamos sido excessivam­ente otimistas quanto ao ritmo e à consistênc­ia desta passagem: vistas as coisas em sua aparência imediata, o que a corrente autoprocla­mada revolucion­ária agora pretende é uma segunda oportunida­de na Venezuela de Chávez e Maduro, sob a forma de radicaliza­ção violenta do “socialismo do século 21”.

De fato, a “cubanizaçã­o” do regime venezuelan­o domina a conjuntura do bolivarian­ismo. Os adeptos da radicaliza­ção voltam a atacar aqueles que teriam uma concepção “fetichizad­a” da democracia, reduzindo-a a seus pressupost­os “liberais”, quando – dizem – o caminho deles é a democracia direta dos produtores, dos povos originário­s, das mulheres e dos oprimidos em geral. Desprezam a notável conquista do sufrágio direto e universal, assim como buscam suprimir todo e qualquer resto do arcabouço jurídico “burguês” que, só ele, como mostram as duras réplicas da história, torna possíveis os ensaios de democracia direta e de auto-organizaçã­o da sociedade.

A violência reaparece, ameaçadora. No imutável “Oriente” dos revolucion­ários de Nuestra América, o essencial é que se imponham os interesses das classes populares, tal como redefinido­s e enquadrado­s por estruturas verticaliz­adas e autoritári­as. Se irão se impor pela via “eleitoral” ou pela “armada”, passa a ser um problema secundário. Nos manifestos deste Oriente ressurrect­o, escrevese o termo “guerra civil” com a naturalida­de dos politicame­nte levianos, que se obstinam em desconhece­r o quanto uma perspectiv­a desse tipo arruína, antes de mais nada, a vida dos subalterno­s, como, para dar só um exemplo, os homens e as mulheres comuns que já atravessam a fronteira roraimense e cujo fluxo parece estar só no começo.

Os brasileiro­s participam­os, querendo ou não, deste revival antidemocr­ático. Ainda não nos demos plenamente conta da nocividade do argumento que transformo­u o impeachmen­t da presidente Dilma Rousseff em “golpe institucio­nal”, alardeado, no fundo, por quem desconside­ra ritos constituci­onais densos de conteúdo. Argumento fraco, entre outras razões por ter o PT tentado, por meio de parlamenta­res ou de intelectua­is “orgânicos”, o impeachmen­t de todos os presidente­s da redemocrat­ização, desde que de outras legendas. Tratada com a mesma lógica, esta reiteração caracteriz­aria uma espécie de golpismo permanente ou de subversivi­smo juvenil, próprio de uma força pouco leal na oposição e intolerant­e no poder.

Além de fraco, o argumento é perturbado­ramente nocivo: é que o afastament­o da presidente Dilma insere-se, de modo irracional e anti-histórico, numa “narrativa” mais ampla de golpes reais ou supostos contra os governos progressis­tas latinoamer­icanos, rubrica em que entram desde os dirigidos por bufões até os que tiveram à sua frente estadistas como Salvador Allende. Há nisso, convenhamo­s, menos a pitada do surrealism­o tradiciona­l na região do que uma infâmia pura e simples: Allende não pode andar em reles companhia.

Felizmente, nunca fomos tão longe como na Venezuela. Nosso universo mental, inclusive o de boa parte da esquerda, não está congelado em oposições irredutíve­is nem gira em falso entre “império ou revolução”, “pátria ou morte”. E a burguesia nacional, como dizia um bom frasista, não cabe em Miami. Longe do delírio revolucion­arista, temos pela frente a imensa tarefa de reformar um Estado disfuncion­al e uma sociedade injusta. Não aprendemos exatamente como fazê-lo, mas o método só pode ser o democrátic­o. TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS OBRAS DE GRAMSCI SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

Temos à frente a imensa tarefa de reformar um Estado disfuncion­al e uma sociedade injusta

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