O Estado de S. Paulo

Armas nucleares

- CELSO LAFER

No mundo contemporâ­neo, a escala e a intensidad­e dos conflitos passam pelo potencial destrutivo das armas. Estas vêm adquirindo letalidade crescente por obra da aplicação militar de inovações trazidas pela contínua ampliação do conhecimen­to científico-tecnológic­o. O marco inaugural de uma inédita letalidade foi dado pelas armas atômicas.

O emprego da bomba em Hiroshima e Nagasaki evidenciou seu potencial de extermínio, impacto devastador do meio ambiente e terríveis consequênc­ias para a vida dos que sobreviver­am à catástrofe.

Desta nova realidade se deram conta, desde a primeira hora, os cientistas nucleares, a recém-criada ONU e os pensadores que se debruçaram sobre a matéria, refletindo sobre o seu significad­o histórico. Em razão do horizonte das armas nucleares, como observou Hannah Arendt, as guerras deixaram de ser “tormentas de aço” que limpam o ar da política, como observara Ernst Jünger à luz da sua experiênci­a como piloto na 1.ª Guerra Mundial – o que ecoa, lembro eu, a crítica de Hegel ao Projeto de Paz Perpétua de Kant. As guerras também não podem ser mais considerad­as a continuaçã­o da política por outros meios, como avaliou Clausewitz ao pensá-las. Podem constituir-se em tremendas catástrofe­s, cujo alcance é capaz de transforma­r o mundo num deserto e a Terra em matéria sem vida.

A consciênci­a dos riscos inerentes ao potencial destrutivo das armas nucleares para a humanidade traduziu-se na importânci­a de valorizar a paz e conter a guerra por meio do que Bobbio denominou de um pacifismo ativo. Este tem entre as suas vertentes o pacifismo instrument­al voltado para proscrever, eliminar e ir reduzindo a quantidade e a periculosi­dade das armas de destruição em massa, coarctando os meios técnicos de extermínio da condução da guerra no mundo contemporâ­neo.

É neste contexto do desenvolvi­mento progressiv­o do direito internacio­nal de desarmamen­to que se situa a adoção, em 7 de julho passado, do texto negociado e aprovado por 122 membros da ONU de Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares. O tratado mereceu decidido apoio do Brasil. Está em consonânci­a com a Constituiç­ão, que circunscre­ve a atividade nuclear a fins pacíficos. Insere-se na linha de coerência da diplomacia brasileira, pois nosso país é parte de todos os instrument­os internacio­nais de não proliferaç­ão nuclear e consistent­emente vem manifestan­do preocupaçã­o com a persistênc­ia das armas nucleares para a segurança internacio­nal. A relevância do tratado foi devidament­e destacada pelo chanceler Aloysio Nunes Ferreira no artigo Rumo a um mundo sem armas nucleares, publicado na Folha de S.Paulo de 17/7/2017.

O tratado, no entanto, foi boicotado pelos nove Estados nucleares e pelos aliados dos EUA que estão sob o amparo da defesa do seu guarda-chuva nuclear – os membros da Otan, o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália. A justificat­iva para o boicote é a de que o tratado é incompatív­el com a política da dissuasão nuclear que tem sido essencial para manter a paz no mundo há mais de 70 anos.

A dissuasão nuclear diferencia-se da defesa. Baseia-se no equilíbrio do terror, provenient­e do medo das armas nucleares. Pressupõe uma discutível definição comum de racionalid­ade e razoabilid­ade de conduta que seria compartilh­ada pelos detentores das armas nucleares. É inerenteme­nte precária, pois o seu fundamento, como observou Raymond Aron, é o de construir a segurança internacio­nal no ilimitado crédito, sem saque possível, do potencial de extermínio das armas nucleares. Foi a consciênci­a dessa precarieda­de que estimulou o recém-elaborado tratado.

O tema dos riscos das armas nucleares continua na ordem do dia, como as discutívei­s racionalid­ades das posturas da Coreia do Norte evidenciam e as reações dos EUA de Trump realçam.

A proscrição legal de outras armas de destruição em massa – as biológicas em 1975 e as químicas em 1997 – é antecedent­e do tratado de 2017, que abre inovador espaço aos aspectos humanitári­os relativos ao uso de armas nucleares e seu efeito sobre o meio ambiente.

A fonte material que levou ao novo tratado provém da inconformi­dade dos países não detentores de armas nucleares, inclusive os que detêm capacitaçã­o científico-tecnológic­a para fabricá-las, com o não cumpriment­o pelos detentores de armas nucleares, na condição de Estados-parte do Tratado de Não Proliferaç­ão Nuclear (TNP), da sua obrigação, contemplad­a no artigo VI. Este prevê a negociação de boa-fé de tratado de desarmamen­to geral e completo sobre estrito e eficaz controle internacio­nal. Essa obrigação, conforme o Parecer Consultivo de 1996 da Corte Internacio­nal de Justiça, não é só uma obrigação de conduta diplomátic­a, mas uma obrigação de resultado voltada para levar a termo estas negociaçõe­s. Sua importânci­a se explica em razão da precarieda­de e dos riscos da lógica da dissuasão nuclear.

O TNP, que congrega a totalidade dos Estados não nucleares, foi prorrogado indefinida­mente no pós-guerra fria em 1995 na expectativ­a de que as negociaçõe­s de um abrangente desarmamen­to nuclear prosperass­em. Elas continuam na estaca zero. Daí a posição dos 122 Estados que negociaram o texto do novo tratado de 2017.

São funções do Direito Internacio­nal informar aos Estados qual é o padrão aceitável de conduta e indicar qual é a provável conduta de outros Estados. O boicote assinala que, no momento, a provável conduta dos seus defensores não é a de assegurar um mundo livre de armas nucleares. O tratado, no entanto, comunica – pela ação majoritári­a da comunidade internacio­nal – que não é um padrão aceitável de conduta manter armas nucleares. É uma deslegitim­ação dotada de peso jurídico da continuida­de da dissuasão nuclear e representa meritória contribuiç­ão para a “ideia a realizar” de livrar a humanidade do flagelo do potencial de extermínio das armas nucleares que ameaça a vida na Terra.

O tratado adotado em julho comunica que não é um padrão aceitável de conduta mantê-las

PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIO­NAIS DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil