O Estado de S. Paulo

Crise migratória

Refugiados ocupam a Vila Olímpica de Turim.

- Jamil Chade

Construída para hospedar pessoas de diferentes nacionalid­ades, simbolizan­do a esperança de que a convivênci­a num só local poderia superar qualquer barreira ou rivalidade, a Vila Olímpica de Turim, com seus 33 prédios erguidos para os Jogos de Inverno de 2006, passou a ser ocupada de forma ilegal por imigrantes de vários países africanos.

Hoje, o complexo é o símbolo de resistênci­a para quem espera uma definição sobre o futuro. Em três anos, a Itália recebeu um total de 600 mil estrangeir­os que, sem poder continuar a viagem a outros lugares na Europa, estão retidos num país com alta taxa de desemprego, anos de recessão e tensão social.

No lugar de atletas e artistas da patinação no gelo, somalis, nigerinos e líbios em busca de sobrevivên­cia moram no local, em meio a precárias condições de higiene. Os quatro prédios ocupados foram invadidos inicialmen­te em 2013, quando acampament­os foram desmontado­s pelas autoridade­s italianas. No entanto, o que era um ato isolado de resistênci­a por parte de alguns ganhou uma nova dimensão nos anos seguintes e hoje imigrantes querem provar que poderiam dar um exemplo de autogestão.

As autoridade­s da prefeitura de Turim explicaram ao Estado que a maioria dos prédios tem uma função pública, usada para abrigar escritório­s e mesmo casas sociais. Quanto aos quatro edifícios ocupados, a prefeitura tentou sem sucesso negociar a retirada dos imigrantes. Em 2015, a cidade ainda saiu vitoriosa em uma disputa legal. De acordo com as autoridade­s, uma ordem judicial decretou o despejo e a cidade garante à reportagem que tem planos para reutilizar o local.

No entanto, o governo local esbarra em um problema: onde colocar as mais de 1,1 mil pessoas que moram ali. Para muitos dos imigrantes, os prédios estão em condições melhores que os estábulos abandonado­s em que eles tiveram de viver no interior da Itália, enquanto esperavam um trabalho para colher laranjas, azeitonas ou uvas.

Mas, ainda assim, os imóveis são o retrato de um projeto fracassado. Por terem sido construído­s a toque de caixa para o evento de 2006, o material usado não era de qualidade e hoje a infraestru­tura está profundame­nte deteriorad­a. Sem os cuidados da cidade e com moradores sem recursos, são frequentes os problemas elétricos, de abastecime­nto de água e saneamento básico.

Por fora, a pintura cuidadosam­ente escolhida pelos arquitetos alemães que foram contratado­s para o projeto não resiste ao tempo e ao descaso. Nos corredores, muitos deles sem luz, cabos cruzam pelo teto tentando levar a todos alguma energia, mesmo que roubada de postes na calçada. Saturado de pessoas, muitas famílias improvisar­am os próprios apartament­os, com cortinas velhas encontrada­s nos lixões.

A professora voluntária de italiano que dá aulas aos imigrantes, Maria Nigri, conta que sua associação foi obrigada a fechar, em maio, a escola que tinham aberto dentro da Vila Olímpica. “O local foi invadido por ratos. Era insuportáv­el. Não tinha mais como entrar”, explicou a voluntária do Comitê de Solidaried­ade aos Refugiados e Migrantes. Nos últimos meses, paga pela associação que se ocupa dos imigrantes, uma empresa foi chamada para colocar veneno e tentar matar os ratos.

Grupos de extrema direita têm jogado bombas nas entradas dos prédios, na esperança de assustar os clandestin­os. “A polícia não agiu”, lamentou Maria, que é professora de uma escola pública de Turim.

Representa­ntes das forças de segurança dizem temer o confronto entre clandestin­os e grupos neofascist­as. Eles também monitoram o risco de uma infiltraçã­o de células terrorista­s entre os mais de mil moradores, além do tráfico de drogas. A própria existência de um local fora do controle das autoridade­s municipais de Turim é, no fundo, o

símbolo do fracasso de parte do legado dos Jogos.

Prejuízo. Se Turim foi o principal centro industrial da Itália no século 20, hoje a cidade luta para se redefinir. Os Jogos de 2006 foram vendidos para a população local como essa oportunida­de de recriar uma cidade. De fato, os dados oficiais apontam que, em 15 anos, os turistas aumentaram de 1 milhão para 6 milhões. Pesquisas de opinião também indicam que os moradores destacaram avanços reais na infraestru­tura do evento.

Os Jogos de Inverno terminaram com um prejuízo de ¤ 30 milhões. Somando o orçamento das competiçõe­s e as obras de infraestru­tura, Turim gastou ¤ 3,6 bilhões no evento. O valor original que seria gasto, segundo as autoridade­s, era de ¤

2,1 bilhões.

Algumas das instalaçõe­s, que ficaram sem uso, tiveram de ser desmontada­s alguns anos depois. Uma delas, a de bobsled,custou ¤ 85 milhões. Mas precisava de cerca de ¤ 1,7 milhão por ano para se manter e nenhum evento conseguia bancar a conta.

Abandono. Em um estudo realizado pelos pesquisado­res Egidio Danseroi, Alfredo Melai e Cristiana Rossignolo­i, o que chama a atenção é o legado da Vila Olímpica, que ocupa 100 mil metros quadrados. “Rapidament­e, ficou evidente que os prédios que alojaram os atletas estavam em um estado de calamidade, o que os impediu de ganhar um novo destino”, constatara­m.

Após os Jogos, o local teria a função de abrigar lojas, feiras e eventos. Como vem sendo o destino de muitas instalaçõe­s Olímpicas como Sochi, Rio e Atenas, Turim também foi um fracasso. No lugar do barulho de um mercado de frutas tradiciona­l, a obra de concreto está em total silêncio, interrompi­do apenas pelo barulho da linha do trem.

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JAMIL CHADE/ESTADÃO-11/8/2017
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FOTOS: JAMIL CHADE/ESTADÃO Abandono. Edifícios e outras estruturas erguidas para os Jogos de Inverno de 2006 não têm manutenção e grupos neofascist­as atacam com frequência
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