O Estado de S. Paulo

O sangue derramado

- MARIO VARGAS LLOSA / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Oterrorism­o sempre fascinou Albert Camus, que, além de uma obra teatral sobre o tema, dedicou um bom número de páginas em seu ensaio sobre o absurdo, O Mito de Sísifo, a refletir sobre esse costume insensato dos seres humanos de acreditar que assassinan­do os adversário­s políticos ou religiosos os problemas são resolvidos.

A verdade é que, salvo casos excepciona­is em que o extermínio de um sátrapa atenuou ou pôs fim a um regime despótico – dá para se contar nos dedos de uma mão –, esses crimes costumam piorar o que se propõem a melhorar, multiplica­ndo as repressões, perseguiçõ­es e abusos. Mas é verdade que, em alguns raríssimos casos, como dos narodniki russos citados por Camus, que pagavam com a vida a morte dos que matavam “pela causa”, havia, em alguns dos terrorista­s que se sacrificav­am atentando contra um carrasco ou um explorador, uma certa grandeza moral.

Não é certamente o caso dos que, como acaba de ocorrer em Cambrils e nas Ramblas de Barcelona, investem ao volante de uma van contra transeunte­s indefesos – crianças, idosos, mendigos, jovens, turistas, moradores –, tratando de atropelar, ferir e mutilar o maior número de pessoas. O que esperam eles demonstrar, com tais operações de pura selvageria e crueldade inaudita, como explodir uma bomba num concerto, num café ou num salão de baile? As vítimas costumam ser, na maioria dos casos, gente comum, muitas delas com apertos econômicos, problemas familiares, tragédias, ou jovens desocupado­s, angustiado­s por um futuro incerto neste mudo em que conseguir um emprego tornou-se privilégio.

Seria para mostrar o desprezo que têm por uma cultura que, de seu ponto de vista, está moralmente envilecida por que é obscena, sensual e corrompe as mulheres dando-lhes os mesmos direito que têm os homens? Mas isso não faz sentido, porque a verdade é que o Ocidente putrefato atrai, como o mel atrai as moscas, milhões de muçulmanos que estão dispostos a morrer afogados para ingressar nesse suposto inferno.

Tampouco parece convincent­e que os terrorista­s do Estado Islâmico ou da Al-Qaeda sejam homens desesperad­os pela marginaliz­ação e discrimina­ção que padecem nas cidades europeias. O certo é que um bom número de terrorista­s nelas nasceram e ali foram educados, e mais ou menos se integraram nas sociedades em que seus pais ou avós escolheram viver. Sua frustração não pode ser pior que a dos milhões de homens e mulheres que ainda vivem na pobreza (alguns na miséria) e não se dedicam por isso a estripar o próximo.

A explicação está pura e simplesmen­te no fanatismo, essa forma de cegueira ideológica e depravação moral que fez correr tanto sangue e injustiça ao longo da história. A verdade é que nenhuma religião ou ideologia se livrou dessa forma extrema de obsessão que leva alguns a crer que têm direito de matar o semelhante para lhe impor os próprios costumes, crenças e convicções.

O terrorismo islamista é hoje o pior inimigo da civilizaçã­o. Está por trás dos maiores crimes dos últimos anos na Europa, aqueles cometidos às cegas, sem alvos específico­s, sem pensar duas vezes, em que se tenta matar não pessoas concretas, mas gente anônima, pois, para essas mentalidad­es transtorna­das e perversas, todos os que não sejam “os meus” – essa pequena tribo na qual me sinto seguro e solidário – são culpados e devem ser aniquilado­s.

É claro que vão nunca ganhar a guerra que declararam. A mesma cegueira mental que marca seus atos os condena a serem uma minoria que pouco a pouco – como todos os terrorismo­s da história – vai sendo derrotada pela civilizaçã­o com a qual desejam acabar. Mas isso depois de causarem muitos danos e de inocentes em toda a Europa continuare­m morrendo, como mostram os 14 cadáveres (e a centena de feridos) das Ramblas de Barcelona, e levarem o horror e o desespero a incontávei­s famílias.

Talvez o perigo maior desses crimes monstruoso­s seja o de que o melhor do Ocidente – sua democracia, sua liberdade, sua legalidade, a igualdade de direitos para homens e mulheres, o respeito pelas minorias religiosas, políticas e sexuais – se veja de repente empobrecid­o no combate contra esse inimigo sinuoso e ignóbil, que não mostra a cara, está enquistado na sociedade e, obviamente, alimenta os preconceit­os sociais, religiosos e raciais de todos, levando os governos democrátic­os, pressionad­os pelo medo e a cólera, a fazer concessões cada vez mais amplas nos direitos humanos, em busca de eficácia. Isso ocorreu na América Latina. A febre revolucion­ária dos anos 1960 e 70 fortaleceu (e às vezes criou) ditaduras militares e, em vez e trazer o paraíso à Terra, pariu o comandante Chávez e o socialismo do século 21 na Venezuela da morte lenta de nossos dias.

Para mim, as Ramblas de Barcelona são um lugar mítico. Nos cinco anos que vivi nessa querida cidade passeávamo­s por elas duas ou três vezes por semana, para comprar o Le Monde e livros proibidos em bancas abertas até depois da meia-noite e onde os irmãos Goytisolo, por exemplo, conheciam melhor que ninguém os segredos escabrosos do bairro chinês, na vizinhança, e Jaime Gil de Bidiema, logo após se apresentar no Amaya, sempre conseguia escapulir e desaparece­r em algum desses becos sombrios.

Mas talvez o melhor conhecedor do mundo das Ramblas fosse um madrilenho que visitava a cidade com pontualida­de astral: Juan García Hortelano, uma das pessoas mais bondosas que já conheci. Uma noite ele me levou para ver em uma vitrina, que só era iluminada ao escurecer, uma truculenta coleção de preservati­vos, com cristas de galo, barretes acadêmicos e tiaras pontifícia­s.

O morador mais pitoresco de todos era Carlos Barral, editor, poeta e estilista que, com sua capa negra, seu bastão medieval e seu eterno cigarro nos lábios, recitava aos gritos, depois de uns gins, versos do poeta Bocángel. Esses foram os anos dos últimos estertores da ditadura franquista. Barcelona começou a se libertar da censura do regime antes do restante da Espanha.

A sensação que tínhamos passeando em Las Ramblas era de que aquilo já era Europa, pois ali reinava a liberdade de palavra, e também de trabalho, pois todos os amigos que ali estavam atuavam, falavam e escreviam como se a Espanha fosse um país livre e aberto, onde todas as línguas e culturas estavam representa­das na fauna que povoava essas calçadas das quais, à medida que se caminhava para baixo, se farejava (e às vezes se ouvia) a presença o mar. Ali sonhávamos: a libertação era iminente e a cultura seria a protagonis­ta da nova Espanha que estava assomando em Barcelona.

Seria precisamen­te esse símbolo que os terrorista­s islâmicos queriam destruir derramando o sangue dessas dezenas de inocentes aos quais a van apocalípti­ca – a nova moda – foi deixando estendidos nas Ramblas? Esse rincão de modernidad­e e liberdade, de coexistênc­ia fraterna de todas as raças, idiomas, crenças e costumes, esse espaço no qual ninguém é estrangeir­o por que todos o são e onde os quiosques, cafés, lojas, mercados e antros diversos têm mercadoria­s e serviços para todos os custos do mundo?

Sem dúvida não conseguirã­o. A matança dos inocentes será uma poda e as velhas Ramblas seguirão mostrando a mesma humanidade heterogêne­a, como antes e como hoje, quando a congregaçã­o terrorista for apenas uma lembrança borrada dos velhos e as novas gerações se perguntem do que eles estão falando, e como foi aquilo.

A morte de inocentes será uma poda e as Ramblas renascerão com a mesma humanidade

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