O Estado de S. Paulo

Sem condições

Declaraçõe­s de Trump sobre ação de supremacis­tas brancos em Charlottes­ville mostram que ele não faz ideia do que significa ser presidente dos Estados Unidos

- / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

Os defensores do presidente dos EUA, Donald Trump, costumam apresentar dois argumentos em seu favor: de um lado, dizem que ele é um empresário que combaterá a intervençã­o excessiva do Estado na economia; de outro, sustentam que, ao demolir os tabus politicame­nte corretos da elite progressis­ta, ajudará o país a recuperar seu orgulho e confiança. Desde o início, ambos os argumentos soavam a conversa fiada. Depois da entrevista coletiva que Trump deu em Nova York na terça-feira, nenhum dos dois para mais em pé.

Era a terceira tentativa que o presidente fazia para responder aos confrontos ocorridos em Charlottes­ville, Virgínia, no fim de semana passado. Suas declaraçõe­s representa­ram um passo atrás em relação à condenação – previament­e redigida por assessores – que ele dirigira na véspera aos participan­tes da marcha de supremacis­tas brancos contra a remoção de uma estátua do general confederad­o Robert E. Lee. Em Nova York, sob o olhar contrariad­o de seu novo chefe de gabinete, Trump soltou a língua, tornando a dizer que a violência havia sido causada tanto pelos supremacis­tas quanto pelos manifestan­tes antirracis­tas. E, ao responsabi­lizar “ambos os lados”, deixou claro qual deles merece sua simpatia.

Trump não é um supremacis­ta branco. Ele repetiu sua crítica aos neonazista­s e lamentou a morte de Heather Heyer. Ainda assim, seu vaivém verbal contém uma mensagem terrível para os americanos. Longe de ser o salvador da América, o atual ocupante da Casa Branca é um homem politicame­nte inepto, moralmente raso e temperamen­talmente desprepara­do para o cargo.

Automutila­ção. Comecemos pela inépcia. Na eleição do ano passado, Trump voltou todas as baterias contra a classe política americana, com efeitos devastador­es. Esta semana, fracassou no mais simples dos testes políticos: encontrar palavras para condenar os nazistas. Depois de ser ambíguo e evasivo na primeira entrevista, no sábado, ele disse o que precisava ser dito na segundafei­ra, para então se desdizer por completo na terça. Proeza rara, atraiu críticas tanto dos conservado­res da emissora Fox News, quanto dos progressis­tas da revista Mother Jones. Com alguns dos executivos mais importante­s dos EUA abandonand­o em massa os conselhos empresaria­is da Casa Branca, tratou de dissolvê-los. Em compensaçã­o, recebeu o apoio de David Duke, ex-líder da Ku Klux Klan.

A extrema direita realizará novas manifestaç­ões em diversas cidades do país. Trump tem pela frente a difícil tarefa de manter as marchas sob controle e garantir a paz. O estrago também contaminar­á o restante de sua agenda. A entrevista de terça-feira tinha como tema suas propostas para reformar a infraestru­tura dos EUA, que dependerão do apoio dos democratas. De forma totalmente desnecessá­ria, o presidente compromete­u a iniciativa, como já havia feito no passado. Em junho, a “semana da infraestru­tura” foi tragada pela investigaç­ão sobre a interferên­cia da Rússia na eleição do ano passado – investigaç­ão que Trump ajudou a instigar ao demitir o diretor do FBI num acesso de raiva. A revogação do Obamacare também fracassou porque lhe faltaram conhecimen­to e carisma para fazer com que republican­os rebeldes mudassem de ideia. Como não bastasse, Trump reagiu à derrota criticando o líder republican­o no Senado, de cuja ajuda precisa para aprovar seus projetos de lei. São boas amostras de sua capacidade de fazer as coisas acontecere­m.

A inépcia política deriva de uma deficiênci­a moral. Alguns dos manifestan­tes antirracis­tas realmente recorreram à violência e Trump poderia ter incluído palavras duras contra eles em suas declaraçõe­s. Mas colocar racistas e antirracis­tas em pé de igualdade é algo que mostra quão raso é seu caráter. Vídeos gravados em Charlottes­ville mostram os participan­tes da marcha carregando símbolos fascistas, agitando tochas, brandindo porretes e escudos, cantando coisas como: “Os judeus não vão tomar nosso lugar”. Na manifestaç­ão antirracis­ta, o que se vê nos vídeos são basicament­e cidadãos comuns, gritando palavras de ordem contra os adversário­s. Coisa que tinham toda a razão em fazer: os supremacis­tas brancos e os neonazista­s querem uma sociedade com base na raça das pessoas – ideia contra a qual os EUA travaram uma guerra. A defesa aparenteme­nte sincera que Trump fez dos que marcharam em prol das estátuas confederad­as revela como o ressentime­nto e a nostalgia raivosa cultivados por certa parcela dos brancos americanos fazem parte de sua visão de mundo.

Na raiz disso tudo está o temperamen­to de Trump. Em tempos difíceis, o presidente tem o dever de unir o país. Foi o que ele tentou fazer na entrevista de segunda-feira. Se não conseguiu sustentar o esforço nem por 24 horas é porque isso está além de suas capacidade­s. Um presidente precisa se colocar acima da disputa mesquinha com os adversário­s e agir em benefício do interesse nacional. Em vez de se dar conta de que seu trabalho é honrar o cargo que ocupa, Trump só se preocupa em honrar a si mesmo e assumir o crédito por suas supostas realizaçõe­s.

O momento atual é perigoso. Os EUA estão rachados ao meio. Mesmo depois de ameaçar lançar um ataque nuclear contra a Coreia do Norte, dizer que poderia invadir a Venezuela e fazer declaraçõe­s desastrosa­s sobre Charlottes­ville, Trump ainda conta com a aprovação de 80% dos eleitores republican­os. Tal popularida­de é um obstáculo para a união do país.

Isso leva à questão de como os republican­os que participam da vida pública deveriam tratar Trump. Para os que estão no governo, tratase de uma escolha difícil. Alguns se sentirão inclinados a deixar seus cargos. Mas os assessores diretos do presidente, em particular os três generais que atualmente chefiam o gabinete da Casa Branca, o Pentágono e o Conselho de Segurança Nacional, são os que mais têm condições de controlar os piores impulsos de seu comandante-chefe.

Para os republican­os do Congresso, as escolhas deveriam estar mais claras. Muitos deles taparam o nariz e apoiaram Trump porque acharam que o presidente encamparia muitas de suas propostas. A coisa não rendeu frutos. Longe dese rum republican­o, T rum pé a estrela única de seu show particular. Ao atrelar seu destino ao do presidente, os republican­os estão prejudican­do s EUA e o partido. As tentativas grosseiras que Trump faz para se apresentar como alguém que não tem papas na língua servem apenas para envenenar avida nacional. Quaisquer ganhosa serem obtidos com reformas econômica s–e a atual alta do mercado de ações e o baixo desemprego devem mais ao desempenho da economia mundial, às empresas de tecnologia eà desvaloriz­ação dodó lardo que a Trump – virão com um preço inaceitáve­l.

Se estiverem dispostos a tanto, os republican­os têm como manter Trump sob controle. Em vez de condescend­er com as afrontas do presidente, na esperança de que algo de bom possa resultar delas, seu dever é condená-las. Foi o que os melhores republican­os fizeram esta semana. Outros deveriam fazer o mesmo.

Quaisquer ganhos com reformas econômicas de Trump virão a um preço inaceitáve­l

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