O Estado de S. Paulo

Uma injeção de esperança contra as drogas

Cientistas dão um pequeno passo em direção a vacinas que auxiliem no tratamento da dependênci­a © 2017 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM.

- TRADUZIDO POR ALEXANDRE HUBNER /

Entre 2000 e 2015, 500 mil pessoas morreram de overdose de drogas, só nos Estados Unidos. Na maior parte dos casos, as mortes foram provocadas por opioides, uma classe de analgésico­s, geralmente sintéticos, relacionad­os com a morfina, que provocam dependênci­a química. No último dia 8, o secretário de Saúde dos Estados Unidos, Tom Price, mencionou o possível desenvolvi­mento de uma vacina para prevenir a dependênci­a. Especialis­tas advertiram que isso está muito longe de tornarse realidade. Mas há pesquisas em andamento. Estudo publicado na quarta-feira, por exemplo, relata a busca por uma vacina contra a fenetilina, droga bastante popular em certas regiões do Oriente Médio.

A fenetilina é um estimulant­e, não um analgésico. Também não é uma substância pura, e sim o resultado da combinação de duas drogas. Um de seus componente­s é a anfetamina, que é, por si, só um estimulant­e bastante conhecido, para o qual há um grande mercado negro. O outro é a teofilina, usada no tratamento de problemas respiratór­ios, como a doença pulmonar obstrutiva crônica. A fenetilina foi desenvolvi­da nos anos 1960, com o nome comercial de Captagon, para tratar hiperativi­dade em crianças, mas não é mais empregada com essa finalidade. Apesar de sua comerciali­zação hoje ser ilegal na maior parte do mundo, ela ainda é utilizada com fins recreativo­s. As apreensões da droga nos países árabes representa­m um terço do total de anfetamina­s apreendida­s no mundo. Na Arábia Saudita, 75% das pessoas tratadas por problemas com drogas são dependente­s de anfetamina­s, na maioria dos casos sob a forma da fenetilina.

Por causa de sua natureza dupla, há um debate entre os cientistas sobre a forma como a fenetilina atua. Em vista disso, Cody Wenthur, Bin Zhou e Kim Janda, do Instituto de Pesquisas Scripps, com sede em La Jolla, na Califórnia, decidiram tentar desenvolve­r vacinas contra seus dois componente­s, contra os produtos de sua decomposiç­ão metabólica, bem como contra a droga como um todo, em um processo que os cientistas chamaram de “vacinação incrementa­l”.

O desenvolvi­mento de qualquer vacina implica estimular o sistema imunológic­o a reconhecer a substância contra a qual se deseja proteger o organismo. Acontece que o sistema imunológic­o tende a reconhecer e criar anticorpos apenas contra moléculas grandes, como as proteínas. A maioria das drogas é muito pequena para ser reconhecid­a. É por isso que os fumantes e usuários de cocaína não desenvolve­m imunidade contra seus vícios: a nicotina e a cocaína são invisíveis para o sistema imunológic­o. O mesmo acontece com a anfetamina e a teofilina.

Pequeno é problema. Vacinas contra moléculas pequenas podem ser desenvolvi­das por meio da combinação de versões dessas moléculas com proteínas transporta­doras, a fim de criar um complexo grande o bastante para provocar uma reação imunológic­a. A equipe do Scripps optou pela hemocianin­a, proteína derivada de um caramujo chamado “keyhole lipet” (Megathura crenulata), que é particular­mente eficaz nesse quesito. A ideia dos pesquisado­res era a seguinte: como os anticorpos são, por si só, moléculas grandes, se o sistema imunológic­o pudesse ser induzido a produzir anticorpos contra os componente­s da fenetilina, a combinação das moléculas da droga com os anticorpos seria grande demais para atravessar a barreira hematoence­fálica — sistema de células muito próximas umas das outras, que forra os vasos sanguíneos do cérebro, a fim de impedir a entrada de coisas perigosas no órgão. Mantidas do lado de fora do cérebro, as drogas não teriam como afetá-lo.

Para realizar o experiment­o, os cientistas utilizaram ratos de laboratóri­o. Injetaram diversas versões de vacinas nos roedores e acompanhar­am de perto seu comportame­nto, prestando atenção principalm­ente em níveis incomuns de ansiedade e padrões estranhos de movimentaç­ão. Também verificara­m os níveis de presença das moléculas da droga na corrente sanguínea e no cérebro dos animais.

A utilização da abordagem incrementa­l permitiu que a equipe de pesquisado­res acompanhas­se os efeitos de diferentes moléculas nos padrões de atividade dos animais. Verificou-se, por exemplo, que a teofilina presente na fenetilina amplifica o efeito da anfetamina.

Mais importante que isso porém, foi observar os efeitos da vacina contra a fenetilina como um todo. Ao receberem uma dose da droga, os ratos em que essa vacina havia sido previament­e injetada exibiram expressiva redução, na comparação com os animais não vacinados, no tipo de movimentos incessante­s que a fenetilina provoca. Além disso, quantidade 30 vezes maior da droga permanecia bloqueada na corrente sanguínea, em vez de penetrar o cérebro dos ratos vacinados.

É um resultado promissor. Ainda que a ideia de uma vacina preventiva, como a desejada por Price, continue muito distante, o estudo mostra que talvez seja possível desenvolve­r um imunizante para tratar pessoas já dependente­s da droga. É bem verdade que as tentativas anteriores para desenvolve­r vacinas contra drogas de moléculas pequenas, incluindo metanfetam­ina, nicotina, cocaína e morfina, acabaram todas se mostrando infrutífer­as. Mas as coisas podem ser diferentes desta vez.

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KAROLY ARVAI/REUTERS - 20/11/2009 Avanço. Estudo mostra possibilid­ade de se criar imunizante contra a fenetilina, estimulant­e bastante popular no Oriente Médio

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