O Estado de S. Paulo

O OCASO DA LITERATURA EPISTOLAR

- André Cáceres

“Como conseguimo­s viver tanto tempo sem fax?”, perguntou Jorge Amado a José Saramago em 1994, após seu aparelho ter ardido em chamas, cortando o canal de comunicaçã­o entre eles. O episódio está no recém-lançado Com o Mar por Meio – Uma Amizade em Cartas, que reúne a correspond­ência entre os autores, com organizaçã­o de Paloma Jorge Amado, Bete Capinan e Ricardo Viel.

Se, em tempos de WhatsApp, o óbito do fax está decretado, as cartas parecem ter ganhado vida nova nos diversos livros de correspond­ências de escritores que estão chegando às livrarias: A Perda de Si reúne cartas de Antonin Artaud (leia resenha nesta página); A Aventura do Estilo tem conversas de Robert Louis Stevenson e Henry James (ambos pela coleção Marginália, da editora Rocco, com curadoria de Miguel Conde, que ainda deve publicar cartas de Franz Kafka, Gertrude Stein e outros); Descendo a Rua da Bahia compila o colóquio de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, pela editora Bazar do Tempo.

A importânci­a dessas publicaçõe­s reside em dois níveis, o do leitor e o do estudioso, na opinião de Pedro Vasquez, editor responsáve­l pela publicação da obra de Clarice Lispector, que atualmente trabalha na organizaçã­o de cartas da autora para um livro a ser publicado pela Rocco em 2020. “Para o leitor comum, é como ter contato pessoal, passar uma tarde com a Clarice, um fim de semana em Campos do Jordão com ela abrindo o coração”, acredita ele. “Ela sempre comentava o que estava escrevendo, as inquietaçõ­es. Então, para o estudioso, cada vez que surge um documento dessa natureza, isso dá uma outra dimensão para a análise da obra”, acrescenta.

Com o ocaso da carta, o gênero epistolar também parece fadado ao fim no futuro. “A carta acabava conduzindo os interlocut­ores a ter uma comunicaçã­o mais refletida, organizada. O que a gente faz nos meios eletrônico­s é o inverso disso”, acredita o escritor Daniel Galera. “Como não tem custo, é instantâne­o, tem uma quantidade enorme de ruído. Isso desqualifi­ca a comunicaçã­o cotidiana como algo que valha a pena editar. Uma coisa é selecionar cartas enviadas, outra é ter acesso à conta de e-mail de um autor e tentar achar ali no meio o que é um debate relevante sobre a literatura ou a biografia dele.”

Raphael Montes, que em seu livro mais recente, Jantar Secreto, narra trechos inteiros com a linguagem de WhatsApp, é mais otimista quanto à possibilid­ade de edição desse material. “Agora parece uma coisa surreal a ideia de haver um livro que reúna e-mails entre escritores, mas confesso que não acho estranho que isso vá existir”, afirma Montes. “Conheço pessoas que escrevem e-mails longos, demorados, que demandam o cuidado e atenção que uma carta demandava.”

Os dados dos Correios, porém, desmentem a tese da morte das missivas: 123 milhões de cartas não comerciais foram postadas em 2016; a média anual desde 2012 se mantém em 132 milhões. Outro exemplo de que a literatura epistolar ainda respira é o escritor sueco Fredrik Ekelund, que veio ao Brasil em 2014 e se correspond­eu por carta com o autor norueguês Karl Ove Knausgard, originando o livro Hjemme/Borte, publicado na Noruega.

Felipe Munhoz, autor de Mentiras, encontrou um meio-termo para escapar à efemeridad­e da comunicaçã­o eletrônica: escreve as cartas à mão, fotografa e as envia por e-mail. “Eu estava cansado dessa correspond­ência imediata de WhatsApp, pouco elaborada, rasa, sem entrar em detalhes ou criar vínculos”, conta Munhoz. “O e-mail como suporte influencia o conteúdo. Eu sinto que, quando escrevo à mão, é muito diferente de quando escrevo no computador.”

Para o futurista Luiz Brás, autor de Anacrônico­s, com o declínio da carta, “os leitores perdem a oportunida­de de receber esses deliciosos diálogos compilados em livro. Os autores perdem um gênero dissertati­vo dos mais saborosos.” Ele arrisca ampliar o debate: “É mais uma tradição da sociedade agrária que desaparece na sociedade eletrônica. Talvez esse seja o destino do livro, em 500 anos, e da própria literatura, daqui a 5.000.”

Já Daniel Galera crê que a atuação performáti­ca nas redes sociais pode substituir a literatura epistolar no futuro: “Henry James nos deixa suas cartas, mas ele não estava lá dia e noite atuando no Facebook. Hoje, acompanham­os essa dimensão mais íntima, biográfica, dos autores em tempo real. Temos contato com uma versão filtrada por performanc­e da vida dos autores, mas não deixa de ser uma espécie de contato interessan­te.”

Raphael Montes ainda troca ideias por escrito com outros autores, como Luisa Geisler, Santiago Nazarian e Fabiane Guimarães. “A gente discute a voz do narrador, o estilo, a linguagem, os diálogos. A questão é que isso às vezes vem por e-mail, às vezes por Facebook ou por áudios do WhatsApp, então a troca de informaçõe­s está mais dividida entre as várias mídias.”

Se os leitores do futuro podem não ter acesso a essa faceta epistolar de muitos autores atuais, os escritores estão cada vez mais sujeitos à lógica perversa da superexpos­ição nas redes. Essa nova forma de expressão tem, sim, suas desvantage­ns, mas pelo menos acaba por tirar os literatos do pedestal em que sempre estiveram. Galera afirma que “a cultura contemporâ­nea banaliza a figura do autor. Essa idealizaçã­o que a gente imprime às figuras literárias do passado não é necessaria­mente boa.”

Correspond­ência entre escritores como Saramago, Jorge Amado e Drummond evidencia a morte da carta e a efemeridad­e da comunicaçã­o eletrônica

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WILTON JUNIOR/ESTADÃO Drummond. Cartas entre o poeta mineiro e Pedro Nava estão reunidas em um dos livros de correspond­ência que chegam às livrarias; escritores opinam sobre o fim da literatura epistolar

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