O Estado de S. Paulo

A POTÊNCIA DE ANTONIN ARTAUD EM SUAS CARTAS

- Dirce Waltrick do Amarante ✱

A Perda de Si traz uma coletânea, inédita em português, de cartas do poeta, dramaturgo e cineasta francês Antonin Artaud. Nelas, o artista discute, entre outros temas, poesia, corpo, sexo e loucura, trazendo à luz não apenas o homem de teatro, reconhecid­o mundialmen­te por seu livro O Teatro e seu Duplo, mas um multiartis­ta angustiado que não separava a arte da vida e de suas alucinaçõe­s e paradoxos.

Numa carta em resposta ao editor da La Nouvelle

Revue Française, Jacques Rivière, que propunha que a correspond­ência de Artaud enviada a ele fosse publicada na revista como ficção, o artista protestou: “Por que mentir, por que colocar no plano literário algo que é o grito da vida mesmo, por que dar aparência de ficção ao que é feito da substância inextirpáv­el da alma e que é como a reivindica­ção da realidade?” Sua correspond­ência acabou sendo publicada pela revista em setembro de 1924.

Se as cartas de Artaud interessar­am a Rivière, os poemas do artista foram rejeitados para publicação, pois existia neles, como se lê numa carta enviada pelo editor ao artista, um “mau jeito e sobretudo estranheza­s desconcert­antes” que não conseguiam “dar impressão suficiente de unidade”. A resposta de Artaud foi contundent­e: “Essa dispersão dos meus poemas, esses vícios de forma, essa diminuição constante do pensamento, é preciso atribuí-la não a uma falta de exercício, de posse do instrument­o que manejava, de desenvolvi­mento intelectua­l, mas a um colapso central da alma, a uma espécie de erosão, ao mesmo tempo essencial e fugaz, do pensamento.” Numa de suas cartas, o leitor poderá ler um de seus poemas: Grito.

O fato é que, para Artaud, cartas e poemas, todos se confundiam, como ele destaca numa correspond­ência enviada ao escritor Jean Paulhan: “Meu queridíssi­mo amigo, você me pediu um livro e eu aproveito para escrever uma carta. Eu não sei se será longa, pois acabo de começá-la, mas pretendo que seja publicada, pois eu a escrevo como um poema que será dedicado a você.” Alex Galeano, no livro Antonin Artaud: A Revolta de um Anjo Terrível (Editora Sulina), que pode servir de paratexto às cartas do artista francês, lembra que parte de sua obra e de seus escritos foi feita em forma de carta. Nessa forma de escrita, ele se reencontra­va e nelas explicava a “contração íntima de seu ser”: “Lá onde outros propõem suas obras, eu não pretendo fazer outra coisa senão mostrar meu espírito.”

Nas cartas a Jean Paulhan, Artaud destaca ainda sua viagem ao México e um movimento no país “a favor da civilizaçã­o anterior a Cortez”, mas critica ferozmente o governo mexicano por proteger os índios enquanto homens e não enquanto índios: “Desde a Revolução, o índio deixou de ser o pária do México; mas é tudo. Não se deu a ele um lugar dele, à parte. Se continua vendo os índios como selvagens.” Dessa viagem ao México, desenvolve­u a ideia de um teatro “ritual e mágico, isto é, ligado a forças, baseado em uma religião, crenças efetivas”.

Nesta coletânea, há ainda cartas enviadas à sua amante Anaïs Nin, a seus médicos e a André Breton, com quem rompeu, tendo sido excluído do grupo surrealist­a. A propósito de sua relação com os surrealist­as, Artaud se negou a escrever um texto sobre a exposição internacio­nal do Surrealism­o e, a Breton, explica a razão: “Não posso escrever para um catálogo que será lido por esnobes, ricos amadores da arte, numa galeria onde não se verão operários nem gente do povo que trabalham todo o dia.”

As cartas enviadas a seus médicos são impression­antes; numa delas, ao dr. Jacques Latremoliè­re, um dos médicos do asilo de Rodez, onde Artaud esteve internado, o artista apela para que não seja mais tratado com eletrochoq­ue: “O eletrochoq­ue, sr. Latremoliè­re, me desespera, me rouba a memória, entorpece meu pensamento e meu coração. Faz de mim um ausente (que se sabe ausente e se vê durante semanas à procura de seu ser, como morto à procura de um vivo que já não é ele, que exige a sua vinda, mas em cuja casa ele não pode mais entrar).”

A respeito da loucura, ele não acreditava que fosse louco, assim como não acreditava que o eram Gérard de Nerval, Van Gogh etc. Para Artaud, todos foram acusados de loucos “por terem desvendado o segredo supranatur­al, surreal, e se você quiser, surrealist­a das coisas”, como afirmou numa carta a Breton.

No ensaio A Arte Suprema, que consta do livro Linguagem e Vida (Editora Perspectiv­a), Artaud afirma que “a arte suprema é dar, por intermédio de uma retórica bem aplicada, à expressão de nosso pensamento, a rijeza e a verdade das estratific­ações iniciais, assim como na linguagem falada. Em uma palavra, o único escritor duradouro é aquele que souber fazer com que a retórica se comporte como se ela fosse pensamento, e não gesto de pensamento.”

É exatamente isso que encontramo­s nestas cartas ora publicadas no Brasil.

AUTORA, ENTRE OUTROS, DE ‘CENAS DO TEATRO MODERNO E CONTEMPOR­NEO’, COORGANIZO­U E COTRADUZIU COM LUCI COLLIN ‘O QUE VOCÊ ESTÁ OLHANDO’ (AMBAS PELA ILUMINURAS), UMA ANTOLOGIA DE PEÇAS DE GERTRUDE STEIN

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MAN RAY Poeta. Artaud foi rejeitado pela ‘estranheza’

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