O Estado de S. Paulo

O ROMANCE ÉPICO POR ALFRED DÖBLIN

- Sérgio Medeiros

Considerad­o um dos maiores prosadores alemães do século 20, Alfred Döblin (1878-1957) é autor do romance Berlin, Alexanderp­latz (Berlim, Praça Alexandre), de 1929, um vasto painel da Alemanha pré-nazista que foi filmado em 1983 pelo cineasta Rainer Werner Fassbinder. “Não tenho um cerimonial de trabalho”, afirmou Döblin certa vez, antes de ter suas obras proibidas e queimadas na Alemanha e ser obrigado a viver no exílio. “Mas não consigo trabalhar numa cidade estranha, raramente em uma mesa de hotel no meu quarto; só na minha casa em Berlin, e em locais berlinense­s, sinto segurança”, justificou o escritor. Essa declaração consta do seu ensaio O Trabalho no Romance, que acaba de ser publicado no Brasil, junto a seis outros de sua autoria, na importante e reveladora antologia A Construção da Obra Épica e Outros Ensaios.

Interlocut­or do futurista Marinetti e um dos fundadores da revista expression­ista Der Sturm (A Tempestade), Döblin, que era neurologis­ta, avisa, já no segundo ensaio da antologia, que quer ir direto ao assunto; a contundênc­ia, portanto, é sua marca expressiva. A escrita ensaística de Döblin, se por um lado é seca e incisiva, por outro se mostra não poucas vezes saborosa, graças sobretudo às analogias inspiradas que recheiam os parágrafos breves.

“O romance não tem nada a ver com a ação”, declara com convicção, explicando: “No romance, trata-se de dispor em camadas, de amontoar, de revolver, de empurrar.” Escritor vanguardis­ta, ele abomina a ação progressiv­a, a trama linear, e cita Homero, Dante, Cervantes e Dostoievsk­i como autores que souberam mostrar que cada instante da vida “é uma realidade completa, perfeitame­nte acabada”. Propõe, ao defender o novo romance épico, uma analogia curiosa: “Se um romance não puder ser cortado em dez partes, como uma minhoca, e cada parte não puder se mover independen­temente, então, ele não presta.”

Um romance que não seja nem linear nem progressiv­o não tem forma fixa, segundo Döblin, pois é, sobretudo, ilimitado. “Os poemas épicos antigos dificilmen­te tinham um começo e, com certeza, não tinham um final”, explica, antes de admitir, sem pudor, que o texto que pratica (era amigo de Bertolt Brecht, dramaturgo que teorizou o teatro épico) carece de forma. Ao abolir a trama tradiciona­l (ou jornalísti­ca, como gosta de dizer), o romance épico, na sua concepção, torna-se uma obra sinfônica. “Devemos nos equilibrar entre a coleção de árias da antiga ópera e a infindável melodia de Wagner”, sintetiza, chamando a atenção para o fato de que dez novelas não fazem um romance, embora possam existir entre elas ligações.

Assim como Wittgenste­in, Alfred Döblin acredita que a ciência e a arte são duas categorias radicalmen­te díspares em métodos de trabalho e em meios de representa­ção. No fim da vida, o filósofo austríaco dedicou-se a refletir sobre ética, religião e cultura, opondo-se, como ele afirmou, à adoração da ciência, que julgava ser caracterís­tica da sua época e contra a qual acabou se insurgindo.

Ou seja, Wittgenste­in, nos seus últimos trabalhos, todos publicados postumamen­te, tentou defender a integridad­e da forma “não científica” de compreensã­o do mundo, a qual é própria da arte. Não é a ciência, mas a arte, segundo declarou, que nos ajuda a compreende­r o outro. Essa crença do filósofo é compartilh­ada por Döblin (os dois não tiveram contato, ao que me consta), para quem, conforme se lê nestes ensaios, o pensamento puramente reflexivo não tem nada a ver com o romance, por mais que sua forma seja tolerante (nela muita coisa é permitida)...

Recorrendo a uma analogia sugestiva (método também empregado por Wittgenste­in), Döblin denuncia os ficcionist­as “conversado­res”: “É perigoso escrever livros que têm a função de provar algo, assim como colocar crianças no mundo com placas: esta será um bispo ou um general e, depois, elas se tornam sabe-se lá o quê. As crianças pagam os pecados dos pais.” Nessa passagem, o escritor está defendendo a ideia de que o romance não deve ser conduzido à filosofia, mas sim à forma artística, embora também admita que o prosador seja um tipo especial de cientista: “Ele é uma mistura de psicólogo, de filósofo, de observador social.”

Organizada por Celeste Ribeiro de Sousa, que assina com Alceu João Gregory a tradução, esta antologia de ensaios breves de Alfred Döblin traz duas apresentaç­ões dos tradutores, as quais poderiam, a meu ver, ter sido reunidas num texto só, para evitar repetições de dados e ideias.

É POETA, DRAMATURGO E ENSAÍSTA. PUBLICOU, ENTRE OUTROS, ‘A IDOLATRIA POÉTICA OU A FEBRE DE IMAGENS’ (POESIA) ‘E AS EMAS DO GENERAL STROESSNER’ (TEATRO)

Livro reúne ensaios do autor de ‘Berlin Alexanderp­latz’ sobre a natureza do romance épico, citando Dante, Homero e Dostoievsk­i

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BAVARIA FILM Televisão. Rainer Werner Fassbinder adaptou ‘Berlin Alexanderp­latz’ (foto) em 1980

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