O Estado de S. Paulo

DIÁLOGO DE EXCLUÍDOS NUM ENSAIO EXEMPLAR DE BRECHT

- Flávio Ricardo Vassoler

Uma estação é um local de trânsito, um antilocal por excelência. Apenas os nômades e condenados da terra – artistas itinerante­s e mendigos, viciados e prostituta­s – buscam abrigo nas estações entre o vaivém e a indiferenç­a da legião de transeunte­s. Entretanto, contextos históricos de fratura do cotidiano tendem a transforma­r as estações em refúgios e bunkers. Os fugitivos de pogroms, epidemias e guerras acreditam que as estações possam resguardá-los, embora já não haja mais para onde e como escapar.

Em meio à devastação da 2.ª Guerra Mundial, o poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (18981956) nos narra, em Conversas de Refugiados, que “dois homens [dois dissidente­s alemães] estavam no restaurant­e da estação ferroviári­a de Helsinque e falavam de política, tomando sempre o cuidado de olhar para os lados. Um deles [o físico Ziffel] era alto e gordo e tinha as mãos alvas, o outro [o proletário Kalle] era atarracado e tinha as mãos de um metalúrgic­o.” (É preciso sempre olhar para os lados: conseguire­mos fugir – ou pior, teremos a chance de nos suicidar – antes que a metástase da Blitzkrieg hitlerista comece a nos torturar?)

Resguardad­os (momentanea­mente) do descalabro nazista, os refugiados brechtiano­s se põem a dissecar algumas historieta­s supostamen­te menores e despidas de sentido, historieta­s que, a bem dizer, nos revelam as mediações entre a sociopatol­ogia da vida cotidiana e a ascensão democrátic­a do partido de Hitler ao poder em 1933.

Era uma vez, para Ziffel, uma lição sobre darwinismo social já em seu primeiro dia na escola: “Ao entrarmos na sala de aula, fomos colocados de pé junto à parede, e então o professor ordenou: ‘Procure cada um o seu lugar’, e corremos para as carteiras. Como houvesse um lugar de menos, um dos alunos não achou o seu e, depois que os demais se haviam sentado, ele se deteve no corredor entre as carteiras. O professor flagrou-o ali parado e lhe deu um bofetão. Tivemos a excelente lição de que não se pode ter má sorte.”

Era uma vez, para Kalle, a vinculação entre a compulsão – ou melhor, a tara – pela ordem, o sumo machismo e a ejaculação do sadismo: “O homem mais ordeiro que conheci na vida se chamava Schiefinge­r, um soldado da SS no campo de concentraç­ão de Dachau. Contava-se dele que não permitia à namorada balançar o traseiro noutro dia que não fosse o sábado e noutro horário que não fosse a noite, nem mesmo por descuido. Na taverna, ele não podia pôr a garrafa de limonada na mesa, se a base do vasilhame estivesse molhada. Quando nos açoitava com o chicote de couro, agia de modo tão consciente que os vergões que causava obedeciam a um padrão que, submetidos a um teste, seriam milimetric­amente aprovados. O sentido da ordem era-lhe de tal maneira entranhado que ele preferiria não açoitar a fazêlo de forma desordenad­a.”

Era uma vez, para o físico Ziffel, as afinidades sumamente eletivas entre a pequenez e o anonimato do Zé Ninguém e a grandiosid­ade e a onipresenç­a do Führer: “Tive um auxiliar de laboratóri­o, o senhor Zeisig, que mantinha tudo em ordem, e isso lhe dava muito trabalho. Arrumava as coisas continuame­nte. Toda manhã as mesas brilhavam de tão limpas. Ele olhava para nós com seus olhos transparen­tes, nos quais não se percebia um único grão de inteligênc­ia; tínhamos pena dele. Nunca imaginei que o senhor Zeisig pudesse ter uma vida privada, mas tinha. Quando Hitler chegou ao poder, descobriu-se que o senhor Zeisig havia sido o tempo todo um velho combatente. Na manhã do dia em que Hitler foi nomeado chanceler, ele disse, enquanto cuidadosam­ente pendurava meu casaco: senhor doutor, agora haverá ordem na Alemanha.”

É como se Brecht nos ensinasse que o substantiv­o Führer provém do verbo führen, que significa conduzir, levar e guiar, dirigir, liderar e estar à frente. Em diálogo com as historieta­s de Brecht, vale lembrar que o psicanalis­ta alemão Wilhelm Reich (1897-1957), em sua obra Psicologia de Massas do Fascismo (1933), analisa com minúcia, por meio de exemplos análogos às historieta­s presentes em Conversas de Refugiados, as afinidades sumamente eletivas (e cotidianas) entre o Führer e a legião de homens e mulheres a serem conduzidos.

As tragédias históricas do século 20 já nos deveriam ter ensinado como e por que contextos de crise chocam o ovo da serpente e liberam anseios sumamente autoritári­os – anseios que se envergonha­m cada vez menos de vociferar que: (i) a democracia não sabe ensinar a cada um o seu lugar; (ii) os condenados da terra jamais deveriam ter tido voz; (iii) as coisas só devem mudar para que permaneçam precisamen­te como sempre foram. Não à toa, Bertolt Brecht chegou a sentenciar que “a cadela do fascismo está sempre no cio”.

Em seu livro ‘Conversas de Refugiados’, o dramaturgo e poeta alemão traça um retrato da Alemanha pré-nazista e da ascensão de Hitler ao poder

É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM ESTÁGIO DOUTORAL JUNTO À NORTHWESTE­RN UNIVERSITY (EUA)

 ?? RUDOLF SCHLICHTER ?? Retrato. Bertolt Brecht pintado por Rudolf Schlichter em 1926
RUDOLF SCHLICHTER Retrato. Bertolt Brecht pintado por Rudolf Schlichter em 1926

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