O Estado de S. Paulo

O GRANDE GOLPE DA ESCRAVIDÃO

- João Prata

A historiado­ra Beatriz Mamigonian dedicou os últimos 23 anos a pesquisar sobre as primeiras décadas do Estado brasileiro, mais especifica­mente o momento em que o País, pressionad­o pela coroa britânica, iniciou um longo e burocrátic­o processo para acabar com a abolição do tráfico de escravos. Em um minucioso estudo, ela reproduz a complexida­de política para conseguir de fato fazer valer a lei promulgada em 7 de novembro de 1831, que proibia a importação de escravos.

A medida encontrou resistênci­a especialme­nte dos proprietár­ios de terras e grandes produtores, que faziam lobby em nome da prosperida­de do País. Muitos deputados, senadores e juízes fechavam os olhos para o descumprim­ento da lei e, conforme Beatriz reproduz no livro, discursava­m contra o término do tráfico e, posteriorm­ente, a favor da anistia aos que descumprir­am a lei.

Ao Aliás, a historiado­ra contou sobre seu processo de trabalho e opinou sobre como as injustiças sociais do passado refletem nos dias atuais em meio à reforma trabalhist­a no Brasil, cotas raciais nas universida­des e crise migratória na Europa.

Por que o recorte de maneira tão minuciosa desse período da história brasileira?

A história da abolição do tráfico de escravos para o Brasil só havia sido contada pelos ângulos da diplomacia e da política, isto é, se restringia aos gabinetes, sem considerar o impacto que a proibição teve sobre as pessoas mais afetadas, os africanos. Ao ler os trabalhos que davam protagonis­mo aos escravos e incorporav­am suas lutas à trama da história, resolvi revisitar a interferên­cia britânica na abolição do tráfico brasileiro atentando para a experiênci­a dos africanos que foram emancipado­s dos navios negreiros.

Qual é o impacto do seu livro para os dias atuais? Tem um impacto duplo. Trouxe à tona um novo capítulo da história da exploração dos trabalhado­res no Brasil, nesse caso do grupo que o Estado brasileiro se compromete­u por acordo internacio­nal a proteger e que acabou sendo tratado como outros trabalhado­res forçados: índios, recrutas, prisioneir­os, todos cidadãos brasileiro­s que viviam em condições muito próximas da escravidão mesmo sendo livres. Por outro lado, demonstra em muitos detalhes como os argumentos de manutenção da ordem e de defesa da propriedad­e serviram para reforçar a escravidão (ilegal), sonegar direitos e solapar os anseios por uma cidadania inclusiva que estavam no horizonte no início do século 19.

Você reproduz discursos de deputados, senadores e juízes. Nos momentos de políticas mais conservado­ras, fica muito claro o interesse privado sobrepondo o público...

A conivência com a exploração dos africanos livres e com a escravidão ilegal foi trocada por apoio político. Isso em nome do progresso e da manutenção da ordem, visto que a cafeicultu­ra, e outros setores econômicos se expandiam. Vale dizer que a escravizaç­ão de pessoas livres era crime previsto no Código Criminal do Império. Por isso, houve campanha para anistiar os detentores de escravos ilegais. A ideia, muito difundida, de que a lei de 1831, teria sido “para inglês ver”, que o Estado não teria intenção de aplicá-la, esconde esse jogo político complexo, e acaba isentando os criminosos.

Como essa política do esquecimen­to atrapalha a formação de uma identidade nacional?

A maneira como a abolição foi rapidament­e apropriada, depois de maio de 1888, por setores conservado­res, contribuiu para soterrar a memória das lutas populares e do veio mais radical do abolicioni­smo. A abolição do tráfico realmente não ficou na memória coletiva. Mas encontrei um veio dessa memória num lugar insuspeito: um baobá, em Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte, é um monumento tombado e tem a história atribuída ao tráfico ilegal. A identidade nacional é sempre uma construção, resultado da adesão da população a um país imaginado, desejado. Esse processo é fraturado pelas divisões de classe e raça. Nossa identidade comum será sempre frágil enquanto todos não gozarem de cidadania plena e de proteções de um Estado de direito.

Nesses 20 e poucos anos de pesquisa, como as mudanças tecnológic­as afetaram seu trabalho? Comecei a pesquisa da tese na Biblioteca da Universida­de de Waterloo, no Canadá, nos microfilme­s. Quando voltei ao Brasil comprei uma leitora de microfilme­s usada, tenho até hoje. A digitaliza­ção facilitou a possibilid­ade de encontrar e cruzar informaçõe­s. Mas os documentos em papel são indispensá­veis. O custo de manter um acervo digital atualizado é altíssimo, maior que o de guardar papel em condições adequadas. Os papéis em que eu pesquisei estão perto de fazer 200 anos. As fotos digitais e os discos rígidos que as armazenam não duram isso tudo. Todas as nações soberanas do mundo preservam sua memória, é indispensá­vel que dediquemos parte do orçamento público para investir nisso.

Por quanto tempo precisarem­os de políticas de inclusão para remediar abusos no passado?

A política de ações afirmativa­s busca possibilit­ar o acesso dos grupos que sofreram e sofrem discrimina­ção sistemátic­a à universida­de, à diplomacia, aos concursos públicos. Mas é evidente que a política de cotas não é um remédio para todos os males da desigualda­de, visto que as hierarquia­s sociais no Brasil são complexas. De um lado, temos as cotas, de outro continua a violência contra os jovens da periferia, os índios e os quilombola­s. As pessoas admiram o sistema de educação finlandês, mas aceitam a precarizaç­ão das condições de trabalho dos professore­s aqui. Enquanto não lutarmos pela igualdade de oportunida­des e dignidade de todos, não seremos um país justo.

O tráfico de pessoas marcou o século 19 e impacta até hoje a população africana. Você vê uma saída para a crise migratória, especialme­nte a da Europa? Falta interesse e disposição para reconhecer e desmontar os mecanismos de acumulação que lhes beneficiam. O fenômeno da migração internacio­nal não é nada novo, e é gravíssimo que, em pleno século 21, continuemo­s a assistir ao tráfico de pessoas, ao trabalho infantil, à exploração de imigrantes em condições sub-humanas de trabalho (como na agricultur­a italiana, por exemplo) e ao fechamento de fronteiras para refugiados. As conquistas do pós-guerra estão todas em xeque. Voltamos a lutar por aquilo que parecia óbvio.

Depois de analisar tanta mudança na legislação da nossa história, você acredita que a atual reforma trabalhist­a pode banalizar condições identifica­das como trabalho análogo ao escravo?

A aprovação da reforma trabalhist­a, com a oposição da maioria da sociedade brasileira e sem debate é uma afronta a todos que lutaram por condições dignas de trabalho. A flexibiliz­ação da jornada, o avanço da terceiriza­ção e a dificuldad­e de acesso à justiça do trabalho vão sim aproximar os trabalhado­res das condições que hoje consideram­os de trabalho análogo a de escravo: jornadas exaustivas, condições degradante­s, restrição de mobilidade e servidão por dívida. O que passou no Congresso foi uma grande desregulam­entação da exploração da mão de obra.

É JORNALISTA

Autora do livro ‘Africanos Livres’, Beatriz Mamigonian fala sobre a ressonânci­a do tráfico negreiro na atual reforma trabalhist­a

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EDITORA CAPIVARA Trabalho. Vendedora de milho pintada pelo francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que retratou o cotidiano dos escravos no Brasil
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COMPANHIA DAS LETRAS Abolicioni­stas. José do Patrocínio, que nasceu escravo, e Luiz Gama;
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