O Estado de S. Paulo

A LIBERDADE DO OLHAR POR JOHN BERGER

- Caio Sarack

Desde a morte do crítico e ensaísta inglês John Berger (1926-2017), seu nome tem sido frequentem­ente relembrado nos debates sobre fotografia e literatura, dada a maneira acessível e clara de tratar de assuntos que, no último século, foram aprofundad­os e rediscutid­os segundo os mais variados matizes. Berger assume uma postura mais empática em relação às várias maneiras de ver e as converte numa comunidade de que todos nós, homens e mulheres, fazemos parte. “O ver é anterior às palavras. A criança vê e reconhece antes que possa falar”, escreve-nos o crítico em sua obra Para Entender uma Fotografia.

E se o olhar vier antes de nossa capacidade lógica e discursiva? Ou, ainda, e se o olhar constituir, por si só, uma capacidade outra de discursar sobre o mundo e sobre a maneira pela qual encaramos nossa situação contemporâ­nea? Se o ato de olhar é primitivo e nos situa como semelhante­s, de que modo podemos compreende­r o mundo ao nosso redor e, consequent­emente, todas as suas representa­ções? Em sua obra, Berger preocupa-se com o “convite a olhar para a realidade” a que a fotografia nos incita. A questão primeira está em diferenciá-la de outras tantas expressões artísticas, tanto pela técnica que a define quanto pela narrativa que ela instaura.

Se a foto é a captura de um instante que já passou, isto é, que não está mais na realidade quando estou diante de sua representa­ção, o que essa foto me diz de diferente sobre uma natureza morta feita a pinceladas ou sobre soldados esculpidos em mármore? Para desdobrar o interesse tão generoso do crítico pelas imagens e suas histórias, precisamos trazer à baila sua preocupaçã­o com a narração de estórias.

Fotografar, hoje, é quase uma extensão do nosso corpo. Com a multiplica­ção dos aplicativo­s que registram nosso dia a dia, tratam nossas imagens e colorem nossos retratos antes desbotados, já parece muito antiquado discutir o significad­o humano desses registros e, ainda mais, entender o que deles podemos reconhecer como a realidade do mundo. Entretanto, Berger permanece atual, já que o gesto que grava uma foto na tela do celular é o mesmo que tenta nos contar uma estória. Ainda que aparenteme­nte óbvio, não é nessa simples colocação que o ensaísta sustenta sua reflexão, mas na maneira particular pela qual a foto conta a estória. Enquanto o pintor distribui no espaço de sua tela os objetos que vai representa­r, a decisão do fotógrafo, segundo Berger, está no tempo que ele escolhe capturar. Ele conta sua estória a partir da exclusão de todos os quadros que rodeiam o instante da foto. “O que a foto apresenta invoca aquilo que não é apresentad­o.” O que nos situa como espectador­es é a capacidade que temos de unir esse instante a um desenrolar que a própria foto suscita, mesmo sem apresentá-lo.

Se refletirmo­s sobre sua atividade, o fotógrafo, por delimitar o tempo, também decide sobre todos os momentos que excluiu da sua foto. Quando tiramos uma foto de um salto na piscina, tomamos o momento do impulso e o momento molhado do contato com a água como nossos, nós entrevemos – por meio do registro fotográfic­o – se devemos sentir frio ou se nos refrescamo­s. A estória que o fotógrafo nos conta não está materializ­ada na foto, mas surge na nossa imaginação; como espectador­es, colamos os rastros existentes do passado e do futuro, indícios que estão ausentes na foto.

Pensando dessa maneira que Berger nos apresenta em seus ensaios compilados pelo escritor inglês Geoff Dyer, a fotografia deixa de ser uma atividade artística entre outras para se tornar um instrument­o de que podemos fazer uso segundo uma intenção que ultrapassa o olhar do fotógrafo: as fotos das guerras civis no Oriente Médio, dos ataques do Estado Islâmico ou qualquer registro de violência podem condiciona­r não só os passados e futuros que estão ocultos na imagem particular que vemos nas capas dos jornais, mas também podem nos aprisionar em um mundo em que só esses passados e futuros são possíveis. A importânci­a da fotografia – e os tempos de Instagram e Facebook fazem coro a esse diagnóstic­o de Berger – está em compreendê-la não como uma obra de um artista e sua individual­idade, mas como um recurso de construção e confirmaçã­o de uma visão da realidade como um todo. O dilema da fotografia não está simplesmen­te na relação em que ela nos coloca com o presente e o ausente na foto, mas em considerar que essa operação pode nos aprisionar num espetáculo do qual não podemos nos livrar, já que elevamos o seu registro à descoberta da verdade do mundo e, consequent­emente, da sua impossibil­idade de mudança. Ver se torna, portanto, o ato de libertar-se.

Ensaios do crítico e ensaísta inglês são reunidos pelo escritor Geoff Dyer no livro ‘Para Entender uma Fotografia’, publicado recentemen­te no Brasil

É MESTRE EM FILOSOFIA PELA FFLCH/USP E PROFESSOR DO INSTITUTO SIDARTA.

 ??  ??
 ?? FOTOS: COMPANHIA DAS LETRAS ?? Visão. John Berger
(acima) interpreta as fotos de mestres, entre eles August Sander, autor da imagem à esquerda, ‘Young Farmers’
FOTOS: COMPANHIA DAS LETRAS Visão. John Berger (acima) interpreta as fotos de mestres, entre eles August Sander, autor da imagem à esquerda, ‘Young Farmers’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil