O Estado de S. Paulo

O poder é do eleitor, e não do eleito

- MODESTO CARVALHOSA

Em questões de relevância política, temos o absurdo hábito de aceitar como fatos consumados as situações criadas pelos interessad­os, sem considerar a sua conformida­de com as regras que permitem tais iniciativa­s.

É o caso da repugnante reforma política ora em votação no Congresso Nacional. A respeito, ninguém se lembrou de questionar se tem o nosso Parlamento poder constituci­onal para promover autonomame­nte uma tal reforma constituci­onal.

O Estado Democrátic­o de Direito funda-se no princípio da soberania do povo, inscrito no artigo 1.º da Constituiç­ão, que por isso deve, no caso de reforma constituci­onal, decidir sobre o seu mérito, mediante plebiscito, na forma do artigo 14 da mesma Carta.

O sistema democrátic­o não se confunde com o sistema autocrátic­o. Na democracia, somente o povo tem poder constituin­te derivado, na forma de plebiscito, como no caso de alterar as regras constituci­onais de sua representa­ção no Congresso.

Os mandantes, ou seja, os eleitores, é que decidem sobre alterações no regime de representa­ção dos seus mandatário­s, os deputados.

No sistema autocrátic­o dá-se o contrário. O Parlamento é soberano, não o povo, e é permitido aos deputados decidirem como os eleitores devem votar. Na autocracia o povo apenas deve, mediante voto obrigatóri­o, eleger os donos do poder, ao sabor dos critérios de “representa­ção” que estes inventam e impõem, de tempos em tempos, conforme suas conveniênc­ias circunstan­ciais de dominação permanente. É o estilo stalinista ou bolivarian­o de poder.

Pois agora, além de todos os relevantís­simos serviços que vêm prestando com ética e alto espírito público a esta nação em frangalhos, os parlamenta­res querem nos impor, goela abaixo, uma reforma política sórdida que eles mesmos inventaram. Sem levar em conta a soberania do povo para decidir sobre a matéria fundaciona­l de representa­ção política de sua vontade, tal como ora inscrito na Constituiç­ão de 1988.

Pois não é que os nossos parlamenta­res, da noite para o dia, transforma­ram o nosso ínclito Congresso numa Assembleia Constituin­te. A impostura é a seguinte: vocês, eleitores, doravante, vão votar em nós, seus “representa­ntes”, conforme achamos mais convenient­e e mais fácil para garantir a nossa recondução.

Em todo o mundo civilizado se impõe a convocação do plebiscito para decidir sobre reforma das regras fundamenta­is da democracia representa­tiva, como é o caso que ora se discute em nosso venerando Parlamento. No plebiscito deverão ser colocadas as questões: voto proporcion­al, “distritão”, distrital puro ou misto? Também deve ser decidido no mesmo plebiscito a aceitação ou não do financiame­nto público de campanha. E aí também todas as demais propostas de reforma política que os parlamenta­res venham a apresentar.

Reforma política é reforma constituci­onal, na medida em que altera os próprios fundamento­s da Carta constituci­onal. Não pode ser confundida com emenda constituci­onal, voltada para matérias pontuais que não afetem o próprio cerne da democracia representa­tiva.

O Congresso não tem poderes constituin­tes permanente­s. O poder constituin­te do Congresso cessou quando da promulgaçã­o da atual Carta Magna, em 5 de outubro de 1988. Não tem, ademais, o Parlamento nenhum poder constituin­te derivado. Nada em nossa Lei Maior outorga aos deputados e senadores o poder de alterar o regime de representa­ção constituci­onal, que é o principal fundamento da própria democracia, sem a realização de um plebiscito a propósito. O artigo 14 da Constituiç­ão é expresso: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular”.

Pergunta-se novamente: desde quando e com que fundamento pode o Congresso alterar o regime constituci­onal de representa­ção proporcion­al e, ainda, introduzir o financiame­nto público de campanha sem que haja plebiscito a respeito?

Nos Estados Unidos, berço da democracia moderna, todas e quaisquer alterações políticas e administra­tivas que afetem a soberania popular são submetidas a plebiscito. São feitas, a cada dois anos, dezenas de consultas plebiscitá­rias nos planos municipais, dos condados, dos Estados e da União. O número de questões levadas à decisão direta do eleitorado é tão grande a cada eleição que os eleitores podem votar antecipada­mente à data do pleito, para evitar a demora no preenchime­nto das respostas submetidas ao escrutínio popular. Na Europa é a mesma coisa. Ainda no ano passado houve plebiscito na Itália para a reforma constituci­onal proposta pelo Parlamento. A mesma coisa na Inglaterra, com o Brexit; e nos países do leste europeu sobre as recentes reformas em suas Constituiç­ões.

Não podemos aceitar esta usurpação olímpica que suas “excelência­s” estão fazendo da soberania popular, que é o principio fundamenta­l do Estado Democrátic­o de Direito, proclamado em nossa Magna Carta.

A autorrefor­ma política proposta fere o cerne dos princípios da Constituiç­ão brasileira. E nem se diga que não se trata de uma reforma. É reforma constituci­onal, sim, na medida em que altera o próprio regime de representa­ção numa democracia representa­tiva, com alterações na própria estrutura do voto e na questão crucial do financiame­nto público de campanhas políticas.

Ao povo brasileiro, por suas instituiçõ­es civis, cabe urgentemen­te estancar esta quebra relevante do nosso sistema político-constituci­onal, seja perante o Supremo Tribunal Federal, requerendo a nulidade desse monstrengo autoprocla­mado, seja pelos movimentos nas ruas e nas redes sociais. Devemos exigir que seja respeitada a regra suprema de que cabe aos eleitores, e não aos eleitos, decidir sobre as alternativ­as de manutenção ou mudança do regime de representa­ção política e sobre a momentosa questão do financiame­nto público de campanha, com sua aceitação ou rejeição.

Não podemos aceitar a usurpação olímpica que suas ‘excelência­s’ fazem da soberania popular

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