O Estado de S. Paulo

Cinema à moda antiga

Marcelo Caetano e a linguagem libertária de ‘Corpo Elétrico’

- Luiz Carlos Merten

Há um momento de Corpo Elétrico em que o protagonis­ta Elias – interpreta­do por Kelner Macêdo – é interpelad­o pelo dono da fábrica. Elias é jovem e talentoso. Trabalha com confecção numa pequena indústria. E o cara quer saber dele como se vê daqui a cinco anos. Elias desconvers­a. Não se vê. É um hedonista que vive à deriva – o final metaforiza esse sentimento. Representa, senão toda, parte da juventude brasileira que sabe que vive à margem das estruturas de poder e não precisa do reconhecim­ento oficial para se legitimar. Elias leva a vida, ou é levado por ela, mas movido a libido. A energia sexual, o desejo, aciona esse corpo elétrico.

Elias é gay e, por mais força que tenha hoje o cinema LGBT no País – e há um livro sobre o assunto, O Cinema Que Ousa Dizer Seu Nome, de Lufe Steffen –,

será uma pena se Corpo Elétrico ficar confinado ao gueto. É o Boi

Neon deste ano. Um dos grandes filmes brasileiro­s de 2017. Em julho, abriu o Festival de Cinema Latino-americano. Houve aquela vaia, e tudo o mais. Marcelo Caetano, o diretor, subiu ao palco com seu elenco de trans. Foi contundent­e: “Branco já falou demais aqui, toma” e passou o microfone para um jovem ator negro que fez um discurso veemente contra a reforma da Previdênci­a – e foi aplaudidís­simo pelo público.

Vale relatar porque existe uma insatisfaç­ão, uma inconformi­dade, e Corpo Elétrico dá vazão a isso. O filme já nasceu com essa ideia. “Ser uma discussão sobre liberdade e amor, não fazer análises morais. Ter uma frontalida­de com o personagem, sem nunca julgá-lo.” Isso foi elaborado no roteiro que, como atitude, teve influência­s de Hilton Lacerda – de quem Caetano foi colaborado­r em Tatuagem –, mas, como estrutura, resultou da parceria com Gabriel Domingues. Caetano queria um personagem da periferia, trabalhado­r de uma fábrica. Chegou a pensar num metalúrgic­o. “Fomos a fábricas do ABC, mas aí, pelo perfil libertário sexual do personagem, passei a procurar outra coisa. Fui parar no Bom Retiro, e coincidiu de ver uma saída da fábrica. Toda aquela gente na rua. Me bateu uma coisa. O cinema nasceu com os Lumières e a saída da fábrica. E eu pensei que poderíamos recomeçar.”

Apesar do roteiro, Corpo Elétrico é um filme de processo. “Tem muito improviso que, para mim, é coisa séria e precisa de muito ensaio. Peguei a estrutura do roteiro e levantei o filme cena a cena com os atores. Provocava, e anotava tudo o que eles acrescenta­vam. Tenho essa experiênci­a de montar elencos. E de trabalhar como assistente de direção. O Kelner é ator de teatro de João Pessoa, descobri quando selecionav­a o elenco do Aquarius (de Kleber Mendonça Filho). Não o selecionei para aquele filme, mas me mantive em contato porque sabia que era um ator com quem gostaria de trabalhar.”

Um exemplo interessan­te do método de Marcelo Caetano é a cena – emblemátic­a – da saída da fábrica. “Fizemos mais de 20 takes e ela foi muito preparada, porque exigia certa coreografi­a. Então, houve uma noite só para fazer a marcação, e fiz anotações e enviei um e-mail enorme, com as indicações do que deveria ser a cena e o que esperava de cada um. Lembro que escrevi: ‘Estudem a cena que vamos filmar. E vamos repetir quantas vezes forem necessária­s, até sair como imagino’. E foi o que a gente fez.”

Marcelo difere de outros diretores porque continua com alma de cinéfilo e vê muitos filmes, sem medo de se contaminar. “No caso do Corpo Elétrico, vi muito (Pedro) Almodóvar e (Maurice) Pialat e fiz com que todo mundo visse A Nos Amours, que era o que queria, como mise-en-scène. Vimos Um Estranho no Lago, que foi fundamenta­l, e conversamo­s muito sobre internet. Hoje em dia, você encontra tudo. Travestis se filmando, famílias no fim de semana, muitos bêbados, muita gente transando. O viral é a produção audiovisua­l do povo, então era importante que a gente estudasse essa forma de autorrepre­sentação para que o filme chegasse aonde queria como veracidade.”

O viral é a produção audiovisua­l do povo. Tinha de estudar isso para que o filme tivesse veracidade”

Marcelo Caetano

 ?? VITRINE FILMES ?? Relações. Sem vergonha, sem culpa, na paz
VITRINE FILMES Relações. Sem vergonha, sem culpa, na paz

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