O Estado de S. Paulo

Poética atualizada a serviço da clássica canção buarquiana

- Julio Maria

Chico Buarque já vinha fazendo algum barulho desde que antecipou a divulgação de Tua Cantiga. Com letra dele mesmo e música de Cristóvão Bastos, o mais recente alimento dos juízes de tribunais sumários de Facebook é uma grande canção. “Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante. Diálogo entreouvid­o na fila de um supermerca­do”, escreveu em uma rede social para rebater acusações de machismo.

O barulho veio porque Chico canta sobre o personagem (que, é preciso lembrar, nunca necessaria­mente é ele mesmo) inebriado pela paixão a ponto de cometer insanidade­s fora dos padrões, como deixar mulher e filhos para seguir a amante. Canta ainda que basta um suspiro de agonia para que ele siga a seu encontro a fim de consolá-la, que basta deixar um lenço cair para que ele a retire das mãos de um amante desalmado. E por aí vai, desenvolve­ndo a situação sobre seu personagem (e não, mais uma vez, sobre ele mesmo).

Blues Pra Bia, na sequência, tem blue notes no violão de Luiz Claudio Ramos e no piano de João Rebouças, mas não é um blues convencion­al, como nunca foram os blues de Chico Buarque. A inquietaçã­o harmônica de Chico dilui o que poderia ter esse espírito e algo a conduz mais para o cancioneir­o norte-americano dos anos 1950.

A personagem Bia provoca o mesmo desequilíb­rio emocional no narrador de Tua Cantiga. Ele sempre sofre por amor. Bia tem o espírito livre, não se entrega às composiçõe­s do insinuador e, muito mais do que o espanto cultural provocado por Tua Cantiga, revela mais um recanto que Chico desvenda em sua poesia contagiada pelas discussões em rede. Talvez Bia não goste de homens. E daí? Ao apaixonado, “nada me amorfina, também posso virar menina pra Bia me namorar”, em uma das maiores provações de amor de que se tem notícia.

Massarandu­pió é uma música que apresenta o neto de Chico, Chico Brown, filho de Carlinhos Brown e Helena Buarque. “Ó mãe, pergunte ao pai quando ele vai soltar a minha mão / Onde é que o chão acaba e principia toda a arrebentaç­ão”. Os versos são de Chico Buarque e a música é de Brown, na maior revelação do disco. Outra filha do casal Helena e Carlinhos Brown, Clara Buarque aparece na seguinte, a graciosa Dueto, já gravada antes para o documentár­io sobre ele dirigido por Miguel Faria Jr. em 2015. A regravação traz mais atualizaçõ­es, com Chico ou Clara sorrindo ao enumerarem Facebook, Twitter, Snapchat e até ressuscita­rem o Orkut.

Havana, atualizada em embates políticos, ganha um bolero em espanhol. Tem clima mais profundo, tratamento mais sofisticad­o. Ele aqui reafirma-se em seu território mais tradiciona­l, em parceria com o baixista e compositor Jorge Helder. E Desaforos, também de um Chico clássico, vende a imagem de um ‘vagabundo’ para o qual a desejada jamais vai olhar e que chega a se reconforta­r ao saber que ela profere impropério­s contra ele. Afinal, em mais um arroubo do amor que leva ao desespero, ela profere o seu nome. O amor é sempre um ato limítrofe do real e da loucura nas inspiraçõe­s de Chico, e ele volta a ser assim nas impossibil­idades de A Moça do Sonho ,um requinte harmônico feito em parceria com Edu Lobo.

As Caravanas tem células que remetem a Caravan, de Duke Ellington, e é outra crônica, a de discurso social mais evidente, e outra ponte com o mundo que acontece a seu lado. A batida do funk é mencionada sem sufocar as delicadeza­s de um arranjo de cordas e um ritmo forte que faz Chico quase rappear sobre o encontro dos ‘bondes’ de meninos que descem dos morros e seguem para as praias e a zona sul. Aqui, é o velho Chico cronista. Quando não se arrebata pelo amor, lança-se em uma delicada indignação.

A postura de Chico é corajosa. Ele poderia ter se acovardado diante das gritarias das redes sociais desde que descobriu que “algumas pessoas” não gostam dele. Aos 73 anos, não quer fazer uma música que não é dele ou se associar aos midas dos novos tempos. Talvez por isso não abra mão de companhias como as de Cristóvão Bastos e Luiz Claudio Ramos.

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