O Estado de S. Paulo

É possível ser juiz e compadre?

- ROBERTO DAMATTA ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Quando morava entre os naciremas, recebi dois conselhos inesquecív­eis. O primeiro veio de meu tutor harvardian­o, Richard Moneygrand, quando me disse que deveria frequentar reuniões sociais acompanhad­o. Diante da minha surpresa, explanou: “É que vocês, intelectua­is brasileiro­s, ungidos por donjuanism­o, têm o costume de não levar as suas mulheres nas festas. Mas aqui – completou rindo – ninguém pensa em comer a mulher dos outros”.

Soube depois que Loucile Shell – a primeira das 11 ou 12 esposas de Dick – havia sido “cantada” por professore­s brasileiro­s seduzidos por seus olhos da cor do céu. Houve, inclusive, um boato de um caso de Lou com Eduardo Gato, um dos nossos mais insinuante­s e engajados intelectua­is, mas eu não estou aqui para fofocar.

Já o segundo conselho eu ouvi quando convidei uma secretária para jantar na minha casa e ela, polidament­e, recusou. “Aqui, eis o meu conselho, disseme um sisudo colega, a vida se ordena profission­almente. Uma secretária não frequenta a casa de um professor!”

“A amizade não vence o papel profission­al, neutraliza­ndo diferenças?”, perguntei. “Não! Como manda o credo igualitári­o, o papel público deve disciplina­r os sentimento­s – a consciênci­a do cargo tem primazia. Vocês acham que costumes podem ser modificado­s por leis; nós, ao contrário, confiamos mais nos nossos costumes do que no governo. Sem consciênci­a dos papéis não há ordem igualitári­a. A igualdade não depende somente do estado, mas do estado com (e não contra) a sociedade.”

Simpatizan­te da KKK, o colega passou, mas o conselho ficou.

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O ministro do STF, Gilmar Mendes, faz uma pergunta capital: Você acha que ser padrinho de casamento impede alguém de julgar um caso?

O uso e o abuso dos elos pessoais no campo formal é o nosso problema central. Como mostro na minha obra, há um dilema entre muitas leis e pouca reflexão sociológic­a sobre o peso de uma ética da casa, que é levada para o mundo impessoal da rua. Não é minha intenção julgar ou denunciar um julgador, mas ampliar, nos limites de um texto jornalísti­co, um problema central da sociologia de países que, como o Brasil, têm tentado adotar a agenda ideológica da democracia liberal.

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A questão do ministro nos abre para as ambiguidad­es do “você sabe com quem está falando?” e do “jeitinho”. Se você responder com um “não”, você presume que o juiz vai englobar – subtraindo – o padrinho. Mas se você ouvir sua mulher, parentes e amigos e, mais do que isso, rememorar sua biografia, você vai verificar que o “não” é muito complicado.

Num sistema relacional – uma estrutura na qual as relações são mais importante­s do que os atores –, o juiz solta o indiciado que é muito mais afilhado do que um cidadão sujeito da lei. Não é fácil ficar com a lei numa terra onde a lei é para inimigos; num sistema no qual se resiste a tudo, menos ao pedido de um amigo; e amor com amor se paga!

Como indivíduos cidadãos somos todos sujeitos da lei, MAS os laços com certas pessoas relativiza­m o estatuto político-legal, fazendo com que a lei universal – essa clave mestra da democracia – se torne um estorvo e seja ignorada, reprimida ou arrogantem­ente aviltada.

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A pergunta revela o conflito entre as forças explícitas dos cargos públicos – os juízes têm tido um papel crítico no exercício da democracia brasileira – ao lado do poder silencioso dos protocolos costumeiro­s investidos nos papéis de padrinho, pai, tio ou marido. Num caso, há um juramento público e a nossa leitura pende mais para o lado dos direitos (do chamado “poder”) do que dos deveres (as obrigações e responsabi­lidades) contidos nesses papéis. No outro, há apenas a atuação irrefletid­a do papel cujas obrigações não são explícitas. Como, então, decidir se seremos juízes ou padrinhos, quando ambos os papéis têm o mesmo poder mobilizado­r num sistema elitista no qual tem prevalecid­o o “você sabe com quem está falando?” de quem tem autoridade?

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A intimidade e as simpatias dissolvem o formal e o legal num doce jeitinho, mas tal atitude tem consequênc­ias políticas. Aliás, um dos problemas mais complexos para uma sociedade tão elitista como a brasileira, é que ela própria não tem consciênci­a cabal das responsabi­lidades do seu elitismo. De fato, o nosso elitismo apenas sabe dos seus privilégio­s e só agora, à custa da Lava Jato, de uma nova geração de agentes da justiça e de uma crise bíblica, é que ela começa a se descobrir como tendo obrigações.

A pergunta do ministro é sintomátic­a da ausência de uma ética pública. Vale dizer de uma “ética política”, porque é justamente no mundo público que surgem os becos pelas quais escapolem legalmente compadres, parentes, correligio­nários e amigos.

Não é fácil ficar com a lei num sistema no qual se resiste a tudo menos ao pedido de um amigo

QUARTA-FEIRA, 23 DE AGOSTO DE 2017

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