O Estado de S. Paulo

Lúcia Guimarães

- E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Meu estômago embrulhou quando fui informada de que o xerife Joe Arpaio foi perdoado.

Acampainha tocou pouco antes das sete da noite. Estamos no horário de verão e a luz que entrava pela janela da cozinha ainda bastava para pilotar meu fogão. Como acabo de me mudar e só conheço uma pessoa no bairro, diminuí o fogo da panela intrigada, abri a porta e ouvi a pergunta à queima roupa: “Você é judia?”. Meio atordoada, respondi, “Não sou religiosa” e balbuciei mais algumas palavras. Impaciente e aflita, a mulher que mora no apartament­o à frente do meu me interrompe­u: “Você é ou não é judia?” Imediatame­nte me dei conta de que era sextafeira, o sol tinha se posto e havia começado o shabat. Minha vizinha, como eu esperava, tinha um problema. “Aconteceu alguma coisa e eu não consegui desligar meu forno,” ela explicou.

Saí descalça atrás dela, atravessei a sala já cheia de bandejas de comida que me abriram o apetite e desliguei o forno controlado por um painel eletrônico digital. Ela me agradeceu como se eu tivesse lhe dado abrigo numa tempestade e se desculpou várias vezes seguidas, supondo que, aos meus olhos, a situação devia parecer absurda.

“Por favor, sempre que precisar, peça ajuda,” insisti. Minha intenção era deixar claro que não estava julgando a racionalid­ade do que, na minha cozinha, não seria um drama e sim dois toques num painel de controle. Meu novo edifício é um microcosmo do que ajudou a tornar Nova York a metrópole do século passado. Tem um alto número de moradores judeus ortodoxos e também hasídicos, como o proprietár­io que, além de me convocar para uma entrevista, me fez escrever à mão, estilo redação do Enem, uma carta explicando por que queria morar no prédio dele. Fiz tudo certo até cometer a gafe de lhe estender a mão para me apresentar. A mão ficou no ar, claro, ele não poderia tocar uma mulher. Mas se apressou em puxar conversa para aplacar meu embaraço.

O prédio tem dominicano­s de baixa renda, possivelme­nte com alugueis de contratos antigos que são uma fração do meu. Tem asiáticos, imigrantes europeus e jovens universitá­rios mais afluentes. A maioria me recebeu com um “você é nova aqui?” ou, simplesmen­te, “bem-vinda,” inclusive o senhor ortodoxo do terceiro andar que, ao me ouvir dizer muito prazer, fez um ar assustado, mas logo relaxou quando viu que não produzi a mão estendida e me contou sobre a história do bairro, enquanto íamos levar o lixo no subsolo.

Na noite de sexta-feira, ao sentar para saborear minha refeição agnóstica, meu estômago embrulhou quando a tela do celular acendeu com um alerta: “O presidente acaba de perdoar o xerife Joe Arpaio”. Racismo não basta para descrever Arpaio, condenado por desacato à Justiça num caso de discrimina­ção racial. Ele chegou a descrever orgulhosam­ente sua cadeia como um campo de concentraç­ão. Poucos chefiaram um bando de sádicos como Arpaio, que fizeram desfile de detentos latinos acorrentad­os pelas ruas. Ou quase quebraram o pescoço de um detento paraplégic­o depois que ele pediu um cateter. Ou exibiram uma excepciona­lmente alta taxa de suicídios não investigad­os dentro das celas. Os contribuin­tes do Condado de Maricopa, no Arizona, onde Arpaio manteve seu reino de terror entre 1993 e 2010, já desembolsa­ram US$140 milhões de dólares para pagar vítimas do homem que o presidente descreve como herói.

Não há a menor dúvida, o perdão para Arpaio é um gesto de jogar carne vermelha e distração para as feras da minoria de americanos que vê no outro a fonte de seus problemas. Por lei, aceitando o perdão, Arpaio, aos 85 anos, aceita culpa e vai viver o resto dos seus dias pagando advogados para se defender de uma enxurrada de processos civis.

O sorriso amistoso da vizinha que habita um mundo tão outro, a metros do meu, me ajuda a lembrar que Arpaio é a deformidad­e. Meu edifício, a realidade.

O perdão para Arpaio é um gesto de jogar carne vermelha e distração para as feras

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