O Estado de S. Paulo

Em vez de ouvir a bateria que tocava, ele ouvia a música que fazia

- Julio Maria

Os novos não terão de Wilson das Neves vídeos no YouTube nos quais ele exibe solos arrebatado­res. A banda jamais parava para que fizesse seu número particular e justificas­se o barulho em torno de seu nome. Assim, sem seus prodígios evidenciad­os pela estratégia do velho solo de bateria que o samba jazz importou dos norte-americanos, o que é que poderia fazer de Wilson Das Neves um nome a se prestar reverência­s? Eis a lição deste capítulo.

Wilson era o garçom que vinha discreto, tirava o pedido do cliente, ia até a cozinha e retornava com o melhor prato. O garçom é um homem invisível. O que deve brilhar é o pedido do cliente. Sua bateria era um ato de humanidade, um gesto, uma entrega incondicio­nal. “Não importa o que você é, importa o que você faz”, a voz do pai ressoava. As mãos leves, mais da condução do que das viradas, mais de caixa do que dos pratos, tocava um instrument­o ao qual o próprio Das Neves não colocava como prioridade em sua vida. Mais do que extasiar-se com a bateria que tocava, ele se divertia com a música que, por acaso, ajudava a erguer. E como são poucos os músicos que podem ouvir a música que fazem em vez do instrument­o que tocam.

Ao lado de Elza Soares, em 1968, Das Neves, já um ponto fora da curva, poderia colocar força e peso em um teste de ego violento. Afinal, Elza não poupava recursos, indo onde podia e não podia com a voz em movimentos explosivos e arrebatado­res. Quando se colocaram a tocar Deixa isso Pra Lá, com muitas partes apenas em voz e bateria, ele dava sua lição. O prato, além de servir para condução do samba, como havia criado Edison Machado, era também uma peça para se investir em improvisos. E tudo com calor e leveza.

Das Neves gostava de grupos cheios, orquestras de baile e formações de gafieira, ao mesmo tempo em que carregava a carga dos toques afros dos terreiros do candomblé que frequentav­a com a mãe. O álbum O Som Quente é o Das Neves, de 1969 (ele lançaria um segundo disco com o mesmo nome, dez anos depois), o mostra em ação conduzindo um som com tudo o que acontecia a seu redor. De Se Você Pensa, de Roberto e Erasmo, a Fly me To The Moon, faz um sobrevoo nos grooves de sua vida sem um minuto de surto ególatra. Ele até poderia ter os seus, mas a música que fazia era mais importante do que a bateria que tocava.

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