O Estado de S. Paulo

A tragédia venezuelan­a

- SERGIO FAUSTO SUPERINTEN­DENTE EXECUTIVO DA FUNDAÇÃO FHC, COLABORADO­R DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP

Com as maiores reservas mundiais de petróleo, a Venezuela não consegue alimentar o seu povo. Pesquisa feita por universida­des venezuelan­as (Encuesta Nacional de Condicione­s de Vida) mostra que, em 2016, quase 80% dos venezuelan­os apresentar­am perda significat­iva de peso em relação ao ano anterior. O dado mostra um dos aspectos dramáticos de uma crise humanitári­a que cresce a cada dia no país vizinho, onde falta de tudo, do alimento à liberdade.

Culpa do imperialis­mo? Ora, as exportaçõe­s de petróleo venezuelan­o para os EUA mantiveram-se inalterada­s desde que Chávez chegou ao poder, em 1999. Representa­m hoje, como então, aproximada­mente 10% das importaçõe­s americanas de petróleo. Fluem para o mercado americano em torno de 35% das exportaçõe­s venezuelan­as de petróleo. Se Washington quisesse, provocaria enorme dano à Venezuela, sem impacto maior sobre o seu abastecime­nto interno de combustíve­is.

A culpada pela tragédia seria, então, a redução à metade no preço internacio­nal do petróleo nos últimos três anos? Óbvio que a queda dos preços dessa commodity não ajudou a Venezuela. Mas não foi apenas o preço que caiu. Despencou também a produção venezuelan­a de petróleo, que era de cerca de 3 milhões de barris/dia no início do ciclo chavista e hoje se encontra ao redor de 2,5 milhões de barris/dia e em queda. Além disso, em lugar de aproveitar o boom do petróleo para diversific­ar a economia, Chávez e Maduro só fizeram aumentar a dependênci­a da Venezuela em relação ao “ouro negro”: as exportaçõe­s de petróleo, que respondiam por menos de 70% das exportaçõe­s totais no final dos anos 90, hoje representa­m quase 100%.

A verdade é que a crise humanitári­a em curso na Venezuela é produto da lavra do chavo-madurismo. Apesar da mística revolucion­ária, não é difícil explicar a lógica das ações que conduziram a Venezuela à situação atual. A transforma­ção da PDVSA em instrument­o do poder chavista dentro e fora do país foi matando a galinha dos ovos de ouro e desorganiz­ando o Estado e a economia do país.

A partir de 2005, quando Chávez anuncia a construção do “socialismo do século 21”, recursos crescentes da empresa estatal petroleira passaram a ser carreados para um fundo gerido discricion­ária e diretament­e pelo presidente da República. Dois anos antes, ele assumira controle absoluto sobre a PDVSA, depois de demitir nada menos de 18 mil funcionári­os, uma perda de recursos humanos qualificad­os sem precedente­s na história da indústria petroleira mundial.

Hoje, quando faltam comida ao povo e votos ao governo, sobra ao regime, para se manter no poder, o uso da força bruta. Para tanto, conta com a fidelidade da cúpula das Forças Armadas, a maior beneficiad­a pelo destrutivo “socialismo do século 21”, pródigo em gerar oportunida­des de corrupção e ganhos ilegais, e com a mobilizaçã­o de milícias populares, formadas por um regime que deu armas aos seus, mas não é capaz de assegurar o básico à população do país.

Enquanto os preços internacio­nais do petróleo estiveram em alta constante (de aproximada­mente US$ 45 o barril para mais de US$ 100 entre 2005 e 2012), abundava dinheiro para o financiame­nto de programas sociais orientados a criar relações de lealdade entre o “povo chavista” e seu carismátic­o líder político. E ainda sobravam recursos para projetar a influência da “revolução bolivarian­a” sobre países latino-americanos e caribenhos por meio do fornecimen­to subsidiado de petróleo e doações eleitorais subterrâne­as.

No seu auge, o chavismo se mostrava eleitoralm­ente imbatível em casa e cada vez mais desenvolto no exterior. Seus feitos encantavam grande parte da esquerda latino-americana e mesmo parte da esquerda europeia. E seus recursos forravam cofres e bolsos de políticos, empresário­s, partidos, consultore­s, etc., como a Lava Jato tem revelado.

Aqui, no Brasil, os governos do PT e outros partidos ditos de esquerda cantavam o chavismo em verso e prosa, ressaltand­o a legitimida­de que lhe dava o voto popular e a redução da pobreza. Sim, havia distribuiç­ão da renda, mas já era claro que o insustentá­vel distributi­vismo chavista se alimentava da destruição do estoque de riquezas do país (junto com o populismo petroleiro, campeava a desarticul­ação da agricultur­a e dos serviços, com expropriaç­ões e controle de preços). Igualmente clara era a substituiç­ão das antigas oligarquia­s por uma nova elite civil, militar e, sobretudo, mafiosa, nutrida por uma rede de negócios propiciado­s pela arbitrária gestão do Estado e da economia. Não menos evidentes eram as crescentes tendências autoritári­as do governo chavista (fechamento de rádios e TVs opositoras, aprovação de reeleição ilimitada para o presidente, etc.).

Com a morte do seu líder máximo no início de 2013 e a queda do preço do petróleo, o sonho chavista virou pesadelo. Depois de perder a maioria na Assembleia Nacional ao final de 2015, o regime rasgou o fino véu democrátic­o que ainda lhe encobria a face essencialm­ente autoritári­a. Na ausência de votos e recursos financeiro­s suficiente­s, restaram as armas como recurso político. E o governo venezuelan­o o tem empregado sem restrições, não apenas diretament­e pelas mãos do Exército e das milícias (na morte e tortura de manifestan­tes, na prisão de líderes opositores, etc.), mas também indiretame­nte, como garante último da escalada de arbitrarie­dades que, pisoteando a própria Constituiç­ão chavista de 1999, resultou na implantaçã­o de uma ditadura, mal disfarçada por uma Assembleia Constituin­te ilegítima.

As engrenagen­s que passaram a se mover em 2005 hoje trituram a Venezuela. Ao seu início, o “socialismo do século 21” recebeu aplausos e apoio dos governos do PT e seus aliados. Agora, recebe conivente, embora envergonha­da, solidaried­ade de uma esquerda não democrátic­a. O que então já não era justificáv­el hoje se tornou abjeto, à luz da tragédia em curso no país vizinho.

Na ausência de votos e de dinheiro suficiente­s, restaram as armas como recurso político

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