O Estado de S. Paulo

Jogos de guerra

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ACoreia do Norte deu o mais ousado passo até agora em uma perigosa escalada de provocaçõe­s aos Estados Unidos e seus principais aliados na Ásia, o Japão e a Coreia do Sul. Às 12h30 de domingo, institutos sismológic­os de Seul, de Tóquio e de Pequim registrara­m um forte tremor de terra que, horas mais tarde, foi confirmado pela imprensa oficial norte-coreana como um bem-sucedido teste de detonação de um artefato termonucle­ar, a bomba H.

O teste atômico realizado neste fim de semana foi o sexto executado com “total sucesso” pela Coreia do Norte desde janeiro, período que coincide com o início do mandato de Donald Trump na presidênci­a dos EUA. Estima-se que a potência da bomba H detonada agora pelo regime de Pyongyang seja de 100 quilotons, 11 vezes mais potente do que outra bomba nuclear detonada pela Coreia do Norte em janeiro de 2016. Para ter uma ideia do dano potencial que o artefato nuclear em poder do ditador Kim Jong-un pode causar, a bomba atômica lançada pelos EUA sobre a cidade de Hiroshima, no Japão, em 6 de agosto de 1945, tinha a potência de 15 quilotons.

O domínio da tecnologia para o desenvolvi­mento e, principalm­ente, para o lançamento de uma bomba atômica por meio de mísseis balísticos interconti­nentais (ICBM) por um país de estrutura econômica e industrial rudimentar como a Coreia do Norte é a comprovaçã­o cabal de que qualquer país, se quiser, pode alcançar o patamar nuclear para fins bélicos. Havendo vontade política para tal – sobretudo quando esta vontade é a de um ditador tresloucad­o – será apenas questão de tempo até a consecução do objetivo.

Em reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, Nikki Haley, embaixador­a dos EUA na ONU, requereu uma resposta mais veemente ao regime de Pyongyang. “Apenas as sanções mais duras vão nos possibilit­ar resolver esse problema pela diplomacia”, disse.

Os esforços da ONU no sentido de deter o ímpeto belicoso da Coreia do Norte são necessário­s, mas devem ser recebidos com ceticismo. Raríssimos foram os casos em que um país cedeu às pressões da chamada comunidade internacio­nal e abandonou o seu programa nuclear para fins bélicos. A exceção conhecida é a África do Sul, que chegou a ter a bomba e hoje se dedica a projetos nucleares de natureza absolutame­nte pacífica.

Outras nações que, por veleidades particular­es e disputas locais, cogitaram desenvolve­r um programa nuclear bélico, como o Brasil e a Argentina, desistiram da façanha quando as razões que as motivavam deixaram de existir.

A gravidade do avanço de Kim Jong-un em sua cruzada de hostilidad­es pode ser medida pelas reações da China e da Rússia, os únicos países com relevante presença no xadrez internacio­nal tidos como aliados da Coreia do Norte. Pequim expressou sua “condenação enérgica” ao teste realizado no fim de semana. Para Moscou, o movimento nortecorea­no representa “uma séria ameaça para o mundo”.

As condições geopolític­as para tal estado de coisas na região da península coreana já estavam dadas. O armistício assinado em julho de 1953, interrompe­ndo a chamada Guerra da Coreia, nunca foi completame­nte assimilado por um país que fora dividido ao meio. Engana-se quem pensa que apenas a Coreia do Sul pretende se unir à Coreia do Norte e formar uma grande república democrátic­a. O contrário também é verdadeiro e em sentido oposto, com o sonho de Kim Jong-un de anexar o Sul a uma ditadura socialista.

Não há dúvida de que Kim Jong-un seja um perigoso ditador. Uma boa dose da responsabi­lidade pela instabilid­ade geopolític­a e militar na região, no entanto, recai sobre os países que permitiram que a situação lá permaneces­se indefinida por mais de 50 anos.

Agora, seja por acidente ou ação deliberada, o mundo vêse às voltas com mais um caso de proliferaç­ão nuclear, numa região obviamente instável e protagoniz­ado por um ditador ciclotímic­o. Não poderia haver quadro pior.

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