O Estado de S. Paulo

Morre no Rio a atriz e cantora Rogéria

Ela tinha 74 anos e estava internada no Rio com quadro de infecção

- Luiz Carlos Merten Luiz Carlos Merten /

Na entrevista que deu ao Estado – na estreia de Divinas Divas, o belo documentár­io de Leandra Leal sobre as pioneiras do travestism­o no Brasil –, Rogéria reafirmou o que nunca se cansou de dizer. Que era “a travesti da família brasileira”. Era.

A atriz e cantora Rogéria, de 74 anos morreu na noite desta segunda-feira, 4, vítima de outra infecção urinária. Ela estava internada em um hospital na Barra da Tijuca, no Rio. A informação de sua morte foi confirmada pelo empresário da atriz, Alexandro Haddad.

Ainda na segunda, ela voltou a ser internada. A informação foi dada pela apresentad­ora Sônia Abrão: “Rogéria volta para a UTI: pessoal, o estado de saúde de nossa querida Rogéria complicou e ela trava agora a sua maior luta pela vida!”. Depois, Sônia voltou às redes sociais para confirmar a morte da colega.

Quem já viu o filme sabe que Leandra conta por meio de um grupo de artistas travestis e transexuai­s a própria história. Menina, ela já vivia nos bastidores do Teatro Rival, na Cinelândia carioca. O teatro pertenceu a seu avô, Américo Leal, e ali as ‘divas’ fizeram shows memoráveis, inclusive o que deu origem ao filme, um dos melhores do ano. Divinas Divas começa de forma muito sugestiva. Com as fotos desses homens que se transforma­ram em mulheres. De fundo, Nelson Gonçalves canta Escultura. É perfeito para definir do que trata o filme.

Rogéria nasceu Astolfo Barroso Pinto no dia 23 de maio de 1943 em Cantagalo, Rio. Tinha 74 anos. Como dizia, metaforica­mente, nunca quis se desfazer do Pinto. “Não sou louca de achar que sou mulher”, mas como artista ela foi – e (quase) perfeita, se não fosse o detalhe. Dizia que já era gay na barriga da mãe e nunca sofreu discrimina­ção. “Minha mãe sempre aceitou como sou e, quando tentavam me discrimina­r, eu baixava o Astolfo.” Garoto, já brincava de Cleópatra, liderando as legiões romanas formadas pelos meninos, da família e do bairro. “Não transava com nenhum pra me respeitare­m. Se alguém quisesse faltar ao respeito, eu baixava o pau. Batia mesmo.”

Começou a carreira artística como maquiadora da TV Rio e, segundo dizia, a convivênci­a com tantos atores, teve algo semelhante a um estádio no Actors Studio, o famoso centro formador de atores de Nova York. Estreou como artista de palco no dia 29 de maio de 1964, no espetáculo Les Girls, na Galeria Alaska, notório reduto de público homossexua­l. Dirigido por João Roberto Kelly, foi o primeiro espetáculo nacional de transexuai­s.

Muito jovem, foi para Paris. “Aquele clima seco transformo­u meu cabelo, que já usava grande. Virou uma juba. Quando veio a cabeleira, liberei a mulher e virei Rogéria.” Na Espanha, não queriam que participas­se de shows porque não era operada. Na França, foi cantar com orquestra. “Cheguei e ninguém me deu bola. Achavam que eu devia ser uma brasileira de m... Pensei comigo: ‘Vou ter de me impor’. Soltei a voz cantando em francês. Me aplaudiram no final.”

No Brasil, participou de shows, filmes, novelas. Foi vedete de Carlos Machado e, em 1979, venceu o Mambembe (importante prêmio criado pelo Ministério da Cultura e que distinguia as melhores produções do eixo RioSão Paulo), por O Desembesta­do, peça com Grande Otelo. Enfrentou a ditadura fazendo espetáculo­s transgress­ores numa época de muita censura. Sobreviveu a tudo e a todos. “Dores, só de amores, que foram muitos.” O público classe A sempre a respeitou, como artista. Fez o crossover. “Fiquei uns dias em São Paulo para lançar o filme (de Leandra). Botava tênis e ia ao supermerca­do. Todo mundo queria fazer selfie comigo. O povo me ama. Sou vitoriosa.” Nunca foi de fazer passeata por direitos de gays, mas sabia que sem seu pioneirism­o, e das demais divas, o movimento LGBT talvez não tivesse avançado tanto no País.

Nunca se esqueceu do que lhe disse a mãe. “Se você vai ser mulher, que seja de classe. Prostituta, não.” Respondeu a uma pergunta indiscreta do Estado – já que nunca operou, xixi sentada ou de pé? “Depende da disposição. Mas se faço de pé, levanto a tampa. Homem é muito porco, mija tudo. E eu seco. Essa história de última gota não é comigo não.”

No teatro, além de vedete de Carlos Machado, participou, em 1976, da peça Alta Rotativida­de, na qual contracena­va com comediante­s como Agildo Ribeiro. Em 2007, Rogéria voltou ao palco como um dos destaques de 7, O Musical, dirigido por Charles Möeller e Claudio Botelho. Ela dividiu a cena com Zezé Motta, Eliana Pittman, Alessandra Maestrini, Ida Gomes, entre outros. Participou ainda, em 2004, ao lado da atriz Camille Ka, da peça Divinas Divas, no Teatro Rival, do Rio. A produção inspirou o documentár­io dirigido por Leandra Leal. Todas suas histórias foram narradas no livro Rogéria – Uma Mulher e Mais Um Pouco, biografia lançada em outubro de 2016, pela editora Sextante. Foi escrita por Marcio Paschoal, amigo e vizinha de Rogéria no bairro carioca do Leme. Charlize Theron era a própria encarnação da beleza no começo de sua carreira. Depois, enfeiou-se para ganhar o Oscar – por Desejo Assassino, de Patty Jenkins. Como a de Halle Berry, que também ganhou o prêmio da Academia e nunca mais fez nada que preste, a carreira de Charlize tornou-se ziguezague­ante. Nos últimos anos, só prestou Mad Max – Estrada da Fúria, de George Miller. Mas ela seguia deslumbran­te, e as pubs de perfumes nos lembravam disso. Eis que Charlize estrela agora Atômica, e algo se passa.

Semriscode­spoiler–apersonage­m, Lorraine, é quem conta a história em flash-back, sinal de que consegue sobreviver ao horror que bate na tela –, a heroína diz no final que conseguiu recuperar sua vida. A frase poderia ser da própria Charlize Theron – ela recupera sua carreira. Neste ano de mulheres empoderada­s – a MulherMara­vilha de Gal Gadot –, a loira atômica é um assombro, mesmo que a bilheteria não tenha estourado com igual intensidad­e.

Talvez tenha a ver com gênero. Diana/Wonder Woman tem aquele romance com Chris Pine e ele .... no desfecho (veja para preencher a frase). Já Lorraine tem um affair com outra mulher. Começa como parte da missão, vira afeto, mas o público conservado­r pode ter-se ressentido. O filme tem as melhores e mais eletrizant­es cenas de ação do ano. Não por acaso, o diretor David Leitch era dublê. Cria uma trama forte. Berlim, em 1989. Não é só o Muro que cai. É todo um mundo. Não é fácil sobreviver no mundo dos homens, mas Lorraine consegue. Magnífica.

 ??  ??
 ?? ALEX SILVA/ESTADÃO-19/6/2017 ?? Divina diva. Inspiração de filme, Rogéria se definia como ‘a travesti da família brasileira’
ALEX SILVA/ESTADÃO-19/6/2017 Divina diva. Inspiração de filme, Rogéria se definia como ‘a travesti da família brasileira’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil