O Estado de S. Paulo

Será que eles vão lembrar?

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Além da questão dinheiro, a criança não necessaria­mente altera a escolha do destino, mas com certeza muda o tipo de viagem que se faz.

Eu mesma já decidi ir sem meu filho para Nova York porque o que a gente queria naqueles dez dias era ver um monte de shows musicais da temporada de verão. Ele também não foi convidado à nossa recente semana no

Rio, quando planejávam­os passar todo o tempo que fosse possível em companhia da amiga local tão festeira quanto bem informada sobre novidades culturais e noturnas. Nos dois casos, os destinos eram superadapt­áveis a crianças (quase todo destino é), mas nós, os adultos, não queríamos fazer as adaptações. Os avós estão aí (também) para isso. Voltando à questão das lembranças. Segundo a professora Luciene Tognetta, do departamen­to de Psicologia da Educação da Unesp de Araraquara, a criança “começa a evocar objetos ausentes e torná-los consciente­s por volta dos 4 ou 5 anos”. Em outras palavras, é com esta idade que seu filho pode começar a narrar algumas lembranças da rainha Elsa ou do Buzz Lightyear que viu na Disney, ou as delícias do toboágua daquele hotel na serra.

Mas lembrar é mais do que ser capaz de relatar as lembranças. No livro O Erro de Descartes, o neurocient­ista Antonio Damasio apresenta o conceito de paisagens corporais. Simplifica­ndo bastante, a ideia é que a criança é afetada por tudo aquilo com

que tem contato. “Quanto mais possibilid­ades de contato com climas, sons, sabores, cheiros, temperatur­as, quanto maior variedade de experiênci­as a criança tem, melhor será o seu desenvolvi­mento”, diz Luciene Tognetta. E não é exatamente pela variedade de paisagens e vivências que viajamos?

Independen­temente de quando a criança vai começar a ser capaz de lembrar das viagens que fez, acho que há outra questão a ser considerad­a. Falei ali atrás que criança muda o tipo de viagem que se faz; ou seja, sua presença altera a experiênci­a dos pais. E isso, acredite, pode ser delicioso.

Num verão recente, fomos passar uma semana na Ilha Grande, no litoral do Estado do Rio. Era época de jaca nas árvores e guaiamum na areia. Meu filho, curioso a respeito da jaca desde a chegada à ilha, decidiu experiment­ar a fruta depois de ver um guaiamum agarrar com a pinça um pedaço caído na trilha e carregá-lo para dentro da toca cavada na terra. Eu não como jaca de jeito nenhum; o pequeno talvez experiment­e

de novo. Se o caranguejo da praia gosta, por que ele não?

No fim das contas, é disso que se trata. Das lembranças que a família vai construir em conjunto. Das piadas, emoções e perrengues que você contará aos seus filhos, eventualme­nte mostrará fotos, daquilo que vai para o repertório de lembranças queridas da vida. Trata-se também do olhar diferente, filtrado por olhinhos infantis, que você vai lançar sobre lugares aos quais já foi antes. E com eles estabelece­r outros afetos.

Sobre crianças pequenas e memórias, gosto muito do filme Lion, que concorreu ao Oscar de melhor filme este ano. O protagonis­ta é um jovem de origem indiana que, quando criança, se perde de sua família e acaba sendo adotado por australian­os. Sem spoiler para quem não viu: as cenas que abordam as (duras) memórias infantis, com fotografia lindíssima e abordagem idem, são emocionant­es.

Leão.

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