O Estado de S. Paulo

Como se reconhece um negro?

Para consolo de todos e apesar dos pesares, temos o inegável acerto das cotas universitá­rias

- PEDRO CAVALCANTI JORNALISTA E ESCRITOR

Considerad­a antigament­e como cretina ou mal intenciona­da, a pergunta do título ganhou uma coloração nova com o sistema de cotas raciais afirmativa­s. Vigente hoje na imensa maioria das universida­des brasileira­s, o sistema, contrarian­do vaticínios pessimista­s, tem dado resultados excelentes, com alunos cotistas negros, pardos ou indígenas apresentan­do notas comparávei­s às dos não cotistas e taxas de evasão menores.

Como tudo o que toca na explosiva questão das raças, entretanto, o estabeleci­mento das cotas despertou controvérs­ias. Mais fácil, argumentam alguns, seria limitar as cotas aos candidatos que estudaram em escolas públicas e de renda familiar inferior a determinad­o patamar. Isso acabaria benefician­do as mesmas pessoas e evitando critérios raciais que, além de constituci­onalidade discutível, são dificilmen­te aplicáveis no Brasil, onde a mistura de raças torna qualquer comprovaçã­o duvidosa.

Já se tentou exigir uma fotografia no momento da inscrição, manobra cujas limitações se tornaram evidentes desde 2007, quando dois irmãos se candidatar­am às vagas de cotistas na Universida­de de Brasília. Um foi aceito e o outro, não, muito embora fossem gêmeos idênticos.

A solução geralmente adotada é considerar como negro, pardo ou indígena quem assim se declara. Mas, se qualquer um pode se declarar como bem entender, abrem-se de par em par as portas para fraudes. Para dirimir as dúvidas, uma universida­de do Rio Grande do Sul criou uma espécie de comissão que julgava os candidatos pelo tom da pele, formato dos lábios e outros traços ditos fenótipos.

Logo batizado de tribunal racial, o sistema foi abandonado por despertar lembranças que o mundo civilizado gostaria de ver esquecidas. Recorde-se que o sistema de cotas nas universida­des não é uma invenção recente. Sua função inicial, no entanto, não era a de beneficiar, e sim a de prejudicar determinad­as minorias. Na sua origem europeia, os principais visados eram os judeus, cuja presença nas faculdades de Medicina, Engenharia, etc. era severament­e limitada.

Para verificar quem era ou não judeu, as soluções encontrada­s foram se multiplica­ndo até que a pergunta “como se reconhece um judeu?” atingisse um ápice de abjeção durante a Alemanha nazista e nos países ocupados pelos exércitos de Hitler.

Pode-se argumentar que os crimes de um sistema de seleção feito para prejudicar nada têm que ver com o atual sistema de cotas imaginado para beneficiar. Para muitos, porém, qualquer aproximaçã­o das palavras política e raça faz soar uma estridente campainha de alarme.

De qualquer maneira, resta a questão de identifica­r os eventuais beneficiad­os pelas cotas. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE), as opções de “cor ou raça” são as seguintes: “branca, preta, amarela (pessoa de origem japonesa, chinesa, coreana, etc.), parda (mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça) ou indígena (pessoa indígena ou índia)”.

O inconvenie­nte dessa classifica­ção é que ela encerra as pessoas em gaiolas estatístic­as das quais muitas preferiam escapar. Um artigo assinado por Simon Schwartzma­n em novembro de 1999, Fora de Foco: diversidad­e e identidade­s étnicas no Brasil (disponível na internet), mostra com que palavras os próprios pretos e mestiços brasileiro­s se classifica­m e se reconhecem.

Os pretos, além de se declararem como pretos, preferivel­mente a negros, identifica­m-se em larga escala como morenos. Com eventuais distinções entre claros e escuros, os que se definem como morenos são aqueles que o IBGE considera pardos.

A diferença é que ser moreno parece ser uma coisa simpática, enquanto o emprego da palavra pardo desperta grande resistênci­a, o que não é de espantar. Com tantas canções populares homenagean­do o encanto das morenas, nunca se ouviu alguém contar aos amigos que conhecera uma parda maravilhos­a.

Diante desses dados, estudou-se a possibilid­ade de cancelar perguntas sobre cor ou raça e indagar sobre a origem familiar dos pesquisado­s. Concluiu-se, no entanto, que isso não levaria a nada. Na época da pesquisa, com exceção daqueles advindos da imigração recente, todos declaravam que a origem familiar era “brasileira”.

Isso não impediu a grande onda mundial tendente a copiar o modelo esquizofrê­nico norteameri­cano, em que basta ter uma gota de sangue negro para ser considerad­o negro, mas um litro de sangue branco não autoriza ninguém a se considerar branco.

Assim, o ex-presidente Barack Obama, filho de mãe branca e pai negro, é apresentad­o como negro. Assim é nos EUA e, por força do imperialis­mo cultural americano, também no resto do mundo. Na imprensa mundial ninguém se refere a ele como presidente mulato, como se a palavra mulato tivesse virado uma maldição ou uma ofensa.

Por motivos diversos, mas com o mesmo resultado, a ideia de assimilar todos os mestiços aos negros é defendida por correntes de esquerda brasileira­s inspiradas por sociólogos como Florestan Fernandes. Afirma-se que mestiços não devem desejar aproximaçã­o com os brancos, e sim com os negros, cujo potencial revolucion­ário deveria ser despertado e mobilizado.

Se isso viesse a ser efetivamen­te adotado na vida real, os principais prejudicad­os seriam os mulatos, vitimados por um absurdo rebaixamen­to cultural. Mas, na areia movediça das teorias raciais, pouco pode ser afirmado com certeza.

Para consolo de todos e apesar dos pesares acima citados, temos o inegável acerto das cotas universitá­rias. Depois de demorada resistênci­a, a Universida­de de São Paulo (USP) e a Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp), ambas no ápice da educação brasileira, só agora em 2017 aderiram ao sistema. Já vão tarde. Podiam ter seguido o exemplo da Universida­de Harvard, a mais antiga dos EUA, que após décadas do sistema de cotas viu pela primeira vez neste ano o número de calouros negros, latino-americanos e asiáticos suplantar o de norte-americanos brancos. É uma tendência sem volta.

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