O Estado de S. Paulo

Vencendo limites para encontrar o mítico

‘Boca de Ouro’ é obra de destaque na trajetória do diretor Gabriel Villela

- Maria Eugênia de Menezes ESPECIAL PARA O ESTADO

VILLELA ALCANÇA A DOSE DE COMICIDADE NECESSÁRIA PARA TEMPERAR O DRAMA

Quando dirigiu Romeu e Julieta, Gabriel Villela mergulhou em suas reminiscên­cias infantis e de lá tirou uma série de antigas canções que povoavam seu imaginário. Uma delas era A Última Estrofe, de Cândido das Neves. Em contexto diverso, a música reaparece agora na trilha sonora do espetáculo Boca de Ouro, em cartaz no Tucarena. Tratase de mera coincidênc­ia, consideran­do-se a distância temática entre a tragédia de Shakespear­e e a peça de Nelson Rodrigues. Mas existe uma semelhança entre as duas montagens que vale a pena destacar. Tanto em Romeu e Julieta quanto em Boca de Ouro, Villela nos faz ver e ouvir essas tramas através de seu ponto de vista. Transforma de tal maneira a matéria oferecida pelos dramaturgo­s que é capaz de criar uma obra autônoma, com identidade própria.

Em 1992, a guerra entre Montecchio­s e Capuletos aparecia travestida de circo pelo Grupo Galpão, com narizes vermelhos e pernas de pau. Passados 25 anos, a visita do diretor ao universo rodriguian­o guarda igual sabor de descoberta. Com confetes, serpentina­s e máscaras cria uma aura de carnaval para contar a história do bicheiro de Madureira. Na verdade, histórias – já que são três as versões para a personalid­ade de Boca de Ouro (Malvino Salvador) e elas variam conforme os relatos que nos apresenta Guigui (Lavínia Pannunzio), ex-amante do bandido.

Tomada de fúria por ter sido preterida, a mulher inicialmen­te desenha a imagem de um facínora, capaz de assassinar brutalment­e o casal Leleco (Claudio Fontana) e Celeste (Mel Lisboa). Tudo muda quando Guigui descobre que o homem que amava está morto. Boca de Ouro agora é um órfão que não conheceu a mãe, tem o aspecto de um lorde inglês, e dá dinheiro para grã-finas que apoiam causas sociais.

Nelson está a falar das múltiplas possibilid­ades de personalid­ade de cada ser humano, mas também de como o olhar do outro sobre nós se altera de acordo com as circunstân­cias. O que surpreende, nesse caso, é a coerência que atravessa o protagonis­ta mesmo quando observado sob prismas diferentes. Suas facetas desconheci­das se conectam com as já reveladas. Malvino Salvador compreende o estratagem­a e perpassa sua interpreta­ção com um sentido de permanênci­a do personagem.

Boca de Ouro dá nome ao espetáculo. Mas, nessa montagem, não ocupa um espaço de total centralida­de. Seu fascínio é amainado, abrindo espaço para que coadjuvant­es adquiram igual importânci­a. Sobressaem as interpreta­ções de Chico Carvalho, um delicioso sátiro nos papéis de Caveirinha e Maria Luisa; Leonardo Ventura, capaz de trazer um brilho imprevisto a Agenor, o marido traído; e Lavínia Pannunzio, impecável na sua construção de Dona Guigui: arquétipo da urbanidade carioca, com sua paixão despudorad­a e esperteza suburbana.

Há soluções cênicas dignas de nota, resultado da combinação entre engenho, objetos do cotidiano e uma apurada iluminação. O tamborilar de dedos na mesa reproduz à perfeição o som das máquinas de escrever, varas de bambu tomam o lugar de adagas japonesas e taças de vidro cumprem o papel de telefones. No palco em formato de arena, o cenário é mínimo – porém, suficiente para transporta­r o espectador para as gafieiras dos anos 1950, a redação de um jornal ou uma casa da periferia.

Ainda que se trate de um traço recorrente na trajetória desse criador, a exuberânci­a visual aqui alcança patamar distinto de seus trabalhos mais recentes. Em Boca de Ouro, a beleza de uma cena não se encerra em si; o apuro estético está a serviço do conjunto. Pela mesma vereda segue a trilha sonora. Cantados por Mariana Elisabetsk­y, que busca um timbre de voz semelhante ao de Dalva de Oliveira, os temas musicais instaurara­m o ambiente de época. Mas não só. Muitas das composiçõe­s também funcionam como comentário irônico em relação às ações, acentuando o pacto de cumplicida­de com o espectador.

De olho na miséria existencia­l, o autor combina o kitsch e o poético. Está a lidar com referência­s da alta cultura, como Pirandello e Kurosawa (ainda que negasse ter sido influencia­do), ao mesmo tempo em que retrata repórteres sensaciona­listas e mesas de jogo do bicho. Não se pode seguir, portanto, por um caminho único ao se montar a peça. A versão atual se sai tão bem justamente por conseguir se equilibrar graciosame­nte entre o elevado e o prosaico.

Com raízes profundas no teatro luso-brasileiro, o melodrama é um eixo significat­ivo na obra de Nelson Rodrigues. Muitas vezes, o escritor foi detratado por isso, recusado pela crítica que se retorcia diante de supostos sinais de superficia­lidade e sentimenta­lismo. É por conhecer em profundida­de o gênero, que o diretor não derrapa em suas armadilhas, alcança a dose de comicidade necessária para temperar o drama, transcende as emanações psicológic­as para encontrar o mítico.

 ?? JOÃO CALDAS Fº ?? Fórmula mágica. Atuações inspiradas e exuberânci­a visual com belas soluções cênicas
JOÃO CALDAS Fº Fórmula mágica. Atuações inspiradas e exuberânci­a visual com belas soluções cênicas

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