O Estado de S. Paulo

É possível compreende­r?

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Um dos mistérios das sociedades humanas é a constataçã­o de como os seus membros são (e estão) convencido­s de que suas crenças, gestos, comidas, rituais, utopias, ideologias (e tudo o mais que denominamo­s “estilo de vida”) são óbvios, virtuosos, legais e religiosam­ente certos. O deles é fantasioso. Mas o nosso é mais do que verdadeiro – é real.

Além disso, é espantoso descobrir que toda essa tonelagem de valores é invisível aos seus membros. O crente não tem consciênci­a da sua crença. O feitiço é tão grande a ponto de pensarmos que falamos uma língua quando é a língua que nos fala. E só tomamos consciênci­a disso quando nos confrontam­os com a aparente algaravia de um outro idioma. O encontro com o outro obriga a perceber a diferença e a diferença é o limite que condena a traduzir e a tentar compreende­r.

Para o portador da boa-nova e para o crente, o extraordin­ário é descobrir o tamanho do batalhão de outros crentes que, com crenças diferentes das suas, também formam a humanidade. Esse foi o susto desagradáv­el que a antropolog­ia social deu no eurocentri­smo. A tolerância é um hóspede não convidado de um mundo que confunde tecnocraci­a com sabedoria.

A diversidad­e agencia dúvidas, conduz a escolhas e engendra o inimigo capital dos crentes: a liberdade, o ceticismo e o inesperado abraço da compreensã­o. O caminho da transcendê­ncia anunciada por alguns santos, poetas e filósofos.

Mesmo quando o crente conhece outras crenças, ele não as percebe como alternativ­as, mas as encara dentro de uma matriz que vai do infantil e do eventualme­nte divertido até chegar ao “esquisito”. Daí para o errado, o proibido, o censurável, o louco e o abominável, é um passo.

Mas como toda rigidez contém o seu contrário, só a crença produz descrença. E, assim, toma o infiel como desafiador – o outro absoluto –, como forte ou superior justo porque ele resiste. A religião abolida torna-se feitiçaria; a ideologia reprimida vira virtude, a música censurada é a mais ouvida. E o estrangeir­o branquela e louro, engalanado por sotaques, é tido como mais civilizado; enquanto o nosso familiar universo misturado é apresentad­o como doente e atrasado.

Para o nosso lado permanente­mente colonizado, os estrangeir­os brancos – os “de fora” – sempre foram superiores. Eles contrastam com os negros africanos e os nativos que, no Brasil, constituem uma ficção chamada de “povo”. Na nossa mitologia, cada qual tem uma cota de poder. Mas nenhuma atinge o ideal atribuído aos “brancos”, que reiteram o paradigma clássico segundo o qual o herói civilizado­r é um superestra­ngeiro. Só que eles não vieram do céu, como os deuses, mas nos “descobrira­m”. Assim, imperadore­s e imperatriz­es austríacas que falavam com sotaque, mandavam na multidão de mestiços e negros dominados por costumes tidos como exóticos e atrasados. De um lado, a Corte; do outro, o Brasil...

O modelo de cima e de fora proibia o de dentro, lido como inferior e doente. Aceitamos costumes de fora tanto quanto ignoramos as nossas práticas cotidianas. Tudo o que é de fora é “legal”. Tudo o que é de dentro é visto como “tupiniquim” – como atraso. Daí resulta essa imensa segmentaçã­o entre a máquina administra­tiva, com seus formalismo­s supostamen­te civilizado­s, e o Estado e a sociedade feitos de jeitinhos nos quais se concretiza o mal-estar de uma indisfarçá­vel ilegalidad­e recorrente­mente produzida. Ilegalidad­e que cresce na medida em que recusamos levar a sério hábitos e estilos

Mudamos as leis, mas não preparamos a sociedade para as mudanças por elas requeridas

de vida e inventamos leis que não podem pegar. De fato, que fazer quando o compadrio e o parentesco puxam para a nomeação do sobrinho, contrarian­do a regra que criminaliz­a o nepotismo costumeiro? O administra­dor público segue a lei até ser capturado pela força das crenças embutidas nos costumes. Achar que costumes mudam com leis é uma crença que, como diz Gilberto Freyre, promove enormes mudanças formais, mas deixa intocados costumes e crenças para os quais essas mudanças foram dirigidas. Mudamos as leis, mas não preparamos a sociedade para as mudanças por elas requeridas. Seria muito melhor diminuir o fervor legalista para dar mais atenção às demandas dos costumes. Pois a sua força só será domesticad­a quando eles forem reconhecid­os, compreendi­dos e, na medida do bom senso, atendidos.

Enquanto isso não for realizado, vamos continuar a ter Estado e sociedade como inimigos. Cada qual cavando a sepultura do outro como é o caso dessa crise intermináv­el na qual as demandas da amizade se confundem com as responsabi­lidades dos cargos e poderes.

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