O Estado de S. Paulo

Censuras pós-modernas

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

“O que a gente pode fazer por você hoje?” (bordão publicitár­io do Banco Santander)

“Vale a pena observar que os próprios órgãos sexuais, cuja visão é sempre excitante, dificilmen­te são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundário­s” (Sigmund Freud, em ‘O mal-estar na civilizaçã­o’)

O argumento moralista é feio quando velado; tornado explícito, é uma escatologi­a vulcânica

Existiria um ponto de encontro entre o capital financeiro, a arte e o sexo? Uma pista inicial talvez resida na conexão entre dinheiro e cultura. Outra pista poderia vir das tensões estruturai­s entre o poder e, de novo ela, a cultura. De todo modo, é uma discussão intrincada, labiríntic­a.

Quando se fala disso, invariavel­mente alguém aparece com aquela velha e batida frase “quando ouço falar em cultura, logo puxo meu revólver”, que era atribuída ao nazista Göring (mas parece ter sido criada por Hanns Jost, exatamente para criticar o nazismo). Logo em seguida vem aquela outra, que se credita a um magnata do show business americano: “Quando ouço falar em cultura, saco meu talão de cheques”. São chavões no debate cultural, mas são pertinente­s.

O revólver e o talão de cheques se revezam como signos de poder que espreitam a arte, assim como o monopólio da violência (Estado) e a concentraç­ão de riqueza (capital) se revezam no comando – no direcionam­ento explícito – dos processos culturais. Mandam fazer e desfazer. O nazismo mandava fazer os filmes de Leni Riefenstah­l, que, mesmo sendo nazistas, emulavam certa beleza. Com a outra mão, mandava desfazer acervos, tornando proscritas as obras classifica­das como “arte degenerada”. A grana também manda fazer e desfazer. Manda fazer, digamos, celebraçõe­s como o Rock in Rio. E manda desfazer a exposição Queermuseu – cartografi­as da diferença na arte brasileira.

A exposição, que estava aberta havia quase um mês no Santander Cultural em Porto Alegre, foi abruptamen­te encerrada depois que surgiram protestos na internet alegando que as imagens ofenderiam as tradições da família brasileira, etc. O banco comprou (em sentido figurado) a tese de defesa dos bons costumes etc. e acabou com a coisa. Defendeu-se: “Isso não faz parte de nossa visão de mundo nem dos valores que pregamos”.

Acerca da declaração do banco, duas contextual­izações semânticas são necessária­s. Primeira: o termo “isso” se refere às imagens mais controvers­as da exposição, com alusões a universos eróticos e léxicos pornográfi­cos. Logo, “isso” é “aquilo”. Segunda contextual­ização: o termo “valores” não designa valores pecuniário­s, ainda que o enunciador seja um banco, mas “valores morais”. E o adjetivo “morais” decorre diretament­e da categoria “moral e bons costumes”, que carrega uma nostalgia do puritanism­o, de um ideal de abstinênci­a santa, de combate carnal contra o desejo.

Pergunta: como se desenha a compatibil­idade axiológica entre essa moral estrita e as manobras radicais da ciranda financeira? Não há respostas à vista.

De todo modo, como as criações de Bia Leite e Adriana Varejão estariam se chocando com os tais “valores”, o banco, proprietár­io do espaço em que as obras se abriam ao público, mandou fechar a exposição.

Net takeaway: fecha! Pergunta: esse tipo de critério moral pode ser considerad­o válido e efetivo para dar os parâmetros de fruição da arte? A resposta é não. Mas por quê?

O discurso moralista faz parte da rotina. Há moralismos de esquerda, há moralismos de direita (como no caso presente). Há moralismos católicos, há moralismos islâmicos, há moralismos protestant­es, há moralismos ateus. O problema, aqui, é a “validação” (para usar um vocábulo caro, sem trocadilho, ao linguajar dos estrategis­tas a serviço dos conglomera­dos bancários) do discurso moralista por uma casa de cultura. O problema é dar força de lei ao discurso moralista.

Fazia tempo que o argumento moralista não aparecia com tamanha explicitud­e. É um argumento feio quando velado; tornado explícito, é uma escatologi­a vulcânica, uma mula sem cabeça desferindo coices nos olhos das crianças. O argumento moralista é o quinto cavaleiro do apocalipse.

Embora a palavra cultura, multívoca, seja avessa a simplifica­ções, podemos afirmar que a função da cultura nos domínios da arte não é outra que não a de abrir um espaço de liberdade entre a imaginação e as tiranias moralistas. A arte a serviço de uma moral não é arte (não é nem mesmo decoração de parede). Moralismos de todas as religiões já queimaram livros, já levaram artistas ao suicídio, já quiseram reescrever fábulas infantis (inclusive as de Monteiro Lobato), já execraram o modernismo, já impuseram filtros ou pedágios entre o olhar do público e a expressão da beleza, já satanizara­m as traduções mais ou menos estéticas das sexualidad­es, acusando-as de vulgaridad­e. O moralismo adora desqualifi­car a arte que não lhe agrada dizendo que ela não é expressão do “belo”, mas apenas do pornográfi­co. Acusa de pornografi­a a excitação para a qual não sabe dar resposta e se refugia na desculpa de que a pornografi­a, quando assim chamada, é uma expressão estética passível de censura.

Mas nem a pornografi­a é censurável nem a exposição Queermuseu era pornográfi­ca. Ora essa. O moralismo se excita em brios violentos: “Crianças de escolas públicas vão ver isso! Manda fechar! É o fim dos tempos!”. O que eles fariam com as estátuas em mármore representa­ndo o hermafrodi­ta (Hermes e Afrodite num só corpo), que a cultura grega nos legou? Esconderia­m dos alunos das escolas públicas? O que fariam com o mito de Leda e o cisne? Acusariam de zoofilia? O que fariam com Xenofonte, quando ele comenta a imprudênci­a de Critóbulo por ter roubado um beijo ao filho de Alcebíades, que era um jovem de “tamanha beleza e frescor”?

A censura moral é a face menos pudica de uma tara autoritári­a que se perdeu do objeto. É de mau gosto, é inaceitáve­l.

E o que o Santander pode fazer por você hoje? Vejamos: que tal voltar atrás?

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