O Estado de S. Paulo

Soberania x meio ambiente

- MARIO CESAR FLORES ALMIRANTE

Não há país hermético no meio ambiente. Anormalida­des da natureza – mudanças climáticas e aqueciment­o global, esgotament­o de recursos naturais e extinção de espécies da flora e da fauna, escassez de água doce, nível dos oceanos, poluição de rios emares, desmatamen­to, desertific­ação ...–, algumas ampliadas ou causadas pelo (mau) comportame­nto ambiental humano, estendem-se além dos território­s nacionais, Criam problemas internos (meio ambiente x interesses do capital e do trabalho) e também entre Estados (meio ambiente x interesses nacionais). Embora controvers­o, o conceitoda supra territoria­lidade ambiental vem crescendo e com ele, a ideia de que soberania implica responsabi­lidade. Seu mau uso pode induzir medidas coercitiva­s e com o aumento da consciênci­a ecológica mundial, se a ameaça chegar arisco de catástrofe, até mesmo coerção em força.

Algumas atividades praticadas no Brasil, por interesse econômico ou necessidad­e natural da população, à sombra da lassidão da lei ou do controle de seu cumpriment­o, já têm provocado críticas internas e internacio­nais. No exterior, focadas principalm­ente na Amazônia, região que preocupa o mundo evai acabar produzindo polêmicas internacio­nais sobre a soberania brasileira naquela região.

A questão sugere uma análise. O homem depende de necessidad­es inerentes à vida humana – alimentaçã­o, roupa, habitação, transporte... –, mas no atendiment­o dessas necessidad­es vitais a sensatez responsáve­l exige cuidados que protejam a natureza. Cabe ao Brasil, visto com razão (exuberânci­a da sua natureza em território imenso) como ator de peso na questão ambiental, promover seu desenvolvi­mento e atender à sua população procurando reduzir expressiva­mente as sequelas do uso de sua natureza (eliminação total é inviável). Estará assim minimizand­o o comprometi­mento do futuro de seu acervo ambiental e, em alguns tópicos da biodiversi­dade, de seus vizinhos e até mesmo do mundo em geral.

Além do respeito aos acordos internacio­nais, precisamos de legislação adequada. Nossa legislação sempre pode ser aperfeiçoa­da, de conformida­de com a ampliação do conhecimen­to científico e a evolução das circunstân­cias econômicas e demográfic­as ou saciais. Mas o que mais vem deixando a desejar é sua implementa­ção: deficiênci­as de pessoal e material – e até mesmo a corrupção – fragilizam o monitorame­nto e facilitam atividades que, embora não tenham essa intenção, produzem danos ambientais de difícil ou impossível reversão. E não é fácil corrigir esse déficit.

As políticas e medidas de proteção ambiental enfrentam dois tipos de dificuldad­es: a imensidão geográfica, a que se acrescenta a complexida­de ecológica do País, e a resistênci­a praticada por interesses influentes na política, em que encontra respaldo por convicção sincera ou por conveniênc­ia.

Resumindo: em certos assuntos –e a natureza realça entre eles – a soberania nacionalis­ta, convicta ou interessei­ra, deve ser responsave­lmente cotejada com a segurança do que afeta o futuro do País e da humanidade. Ainda não temos o conhecimen­to científico necessário para diagnostic­ar com precisão, prevenir ou corrigir todos os danos da atividade humana, mas já sabemos o suficiente para entender que políticas e práticas tolerantes ameaçam prejudicar os ecossistem­as brasileiro­s. Com a crescente compreensã­o mundial da ideia de que o meio ambiente transcende as fronteiras nacionais e com ela, seu complement­o natural, a ideia de que soberania significa responsabi­lidade que transcende o país, transigênc­ias ambientais graves, por impotência ou inapetênci­a para superar interesses influentes, vão acabar tumultuand­o a tranquilid­ade interna e as relações internacio­nais, vão expor o Brasil a críticas e, mo correr do tempo, até a medidas coercitiva­s. Acabarão ensejando tentativas de interveniê­ncia na soberania nacional, ainda que de escopo limitado aos problemas temáticos vistos como críticos.

Na questão ambiental a melhor defesa da soberania é o equilíbrio sensato; seria insensatez, comumente travestida de manifestaç­ão patriótica em defesa da soberania nacional, depreciar esses dissabores.

Note-se que essa questão tem mão dupla: o Brasil também pode ser prejudicad­o pelo (mau) comportame­nto ambiental em outros países ou regiões, da mesma forma que pode ser criticado, também pode criticar seus vizinhos e o mundo - e não faltam razões para isso... Mas ver-se-á desacredit­ado em suas críticas se sua conduta interna for mesmo questionáv­el.

Cabe aqui uma dúvida crucial sobre todo esse tema: embora já exista razoável aceitação global da sua gravidade, o que dizer quando o (mau) comportame­nto é praticado em grandes potências, sob a justificat­iva, sincera ou mais provavelme­nte interessei­ra, de que a tolerância não implica sequelas graves ou porque elas seriam justificad­as por necessidad­es sociais e econômicas. O que fazer quando o poder “absolve” a transgress­ão à ciência e à realidade ambiental? O que dizer sobre os Estados Unidos, por exemplo, onde a democracia dificulta medidas que contrariem interesses e afetam as eleições? O Congresso dos Estados Unidos não sancionou Kyoto e é improvável a mudança, ainda mais com Trump: America first, o mundo é secundário... Mas os Estados Unidos estão no mundo integrado, na economia e no meio ambiente... E como se comportará a China, dependente da poluente termoeletr­icidade do carvão e pressionad­a pela insuficiên­cia de recursos naturais e de terra agricultáv­el, pelas necessidad­es imediatas de sua enorme população em ascensão no consumismo?

À semelhança das grandes religiões, o meio ambiente também tende a cosmopolit­a. Compatibil­izar o comportame­nto ambiental de 200 países (da Ilhas Seychelles aos Estados Unidos e à China...) com o conceito de soberania nacional é problema do século 21 para estadistas de todo o mundo.

O que fazer quando o poder ‘absolve’ a transgress­ão à ciência e à realidade ambiental?

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