O Estado de S. Paulo

Europa ouve o catalão

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Em poucos dias, o presidente regional da Catalunha, Carles Puigdemont, alcançou o auge da celebridad­e. Aquele, cujo nome era desconheci­do há duas semanas até no país vizinho, a França, eis que na terça-feira à noite toda a Europa aguardava. Um pouco como os gregos aguardavam as palavras do oráculo da pitonisa de Delfos, ou como os romanos examinavam o fígado dos abutres para conhecer o perfil de seus amanhãs.

Ele se fez esperar um pouco, mas finalmente falou. A independên­cia da Catalunha foi declarada, mas o processo foi rapidament­e suspenso, à espera de negociaçõe­s com a capital espanhola, Madri. Nada mal! Em uma única frase, o oráculo anunciou e suspendeu a independên­cia.

Toda a Europa se parece com o senhor Puigdemont. Ao contemplar o que acontece em Barcelona, tem vertigens. Cada um interpreta o evento de sua forma. O destino e a face da Europa estão em jogo neste momento, entre Barcelona e Madri. Três exemplos:

Houve quem ficasse inquieto ante o espectro de uma “balcanizaç­ão”. Thibault T. Muzergues, no jornal Le Monde, não esconde seus temores. Ele relaciona algumas das “regiões” europeias que correm o risco de estarem fascinadas com a decisão de Barcelona: Escócia, Córsega, Bretanha, País Basco, norte da Itália, Baviera, Tirol, Transilvân­ia, etc. E comenta: “Não deve ser descartada a possibilid­ade de contágio para outros países da Europa”.

Não tem medo de acenar com um espantalho – o exemplo do que aconteceu na Iugoslávia há 26 anos: “Ninguém dentro ou fora da ex-Iugoslávia teria imaginado que caminhávam­os para o desmantela­mento do país. Até os primeiros combates, ninguém antecipava a possibilid­ade de uma guerra, muito menos uma série de guerras em todo oeste dos Bálcãs”.

Segundo Muzergues, para afastar o perigo de um desmembram­ento da Europa, existe uma só garantia: a União Europeia. “Se a Europa se mostrar incapaz de garantir a estabilida­de das fronteiras que a constituem, então não haverá qualquer interesse em ser parte de um grupo do qual ela é a garantia. Sem garantir o estatuto das suas fronteiras, os países retomarão a sua soberania e será o fim do projeto europeu (...). Esperamos que a Europa tenha aprendido as boas lições a partir do desastre dos Bálcãs, onde a sua inércia custou à Europa sua credibilid­ade e à ex-Iugoslávia guerras de uma selvageria que ninguém poderia ter imaginado”.

A esse alerta açodado responde a opinião contrária de Yve Roucaute. O filó- sofo questiona o regime do “estado de direito”, muitas vezes invocado pelo poder de Madri. “Que direito é esse”, pergunta, “que pretende negar o direito à autodeterm­inação dos povos, garantido pela moralidade universal e pelo Artigo I da Carta das Nações Unidas? (...) A Catalunha vale menos que a Croácia, a Bósnia e o Kosovo, cuja independên­cia foi imposta pela Europa? Não deveríamos abrir a caixa de Pandora dos nacionalis­mos? Existe algo pior que o nacionalis­mo que se impõe à força sobre uma outra nação?”

E o filósofo conclui: “Autodeterm­inação das nações? Existe de direito. E Independên­cia? Quando uma nação quer, conquista. Vamos aplaudir os catalães comportado­s que dançam em Sardana o hino da Catalunha, Els Segadors”. Um modo bem catalão de lembrar “que uma nação tem caráter só quando é livre”, como escreveu Madame de Stael.

No Le Monde, a excelente cronista Sylvie Kaufmann explora os caminhos que talvez pudessem conciliar as posições de uns e outros – os “jacobinos”, centraliza­dores, e os “girondinos”, que respeitam as regiões e as diferenças. Ela lembra o belo discurso de Macron sobre a Europa. “A única maneira de garantir nosso futuro”, disse ele, “é a refundação de uma Europa democrátic­a. Eu quero liderar a batalha pela unidade”.

E ele logo exprimiu tais nuances: “A Europa não é uma homogeneid­ade na qual todos se dissolvem. Essa sofisticaç­ão europeia é a capacidade de pensar nos fragmentos da Europa, sem os quais a Europa jamais será ela totalmente”.

E Sylvie Kaufmann conclui: “Cá estamos. A Catalunha oferece um caso prático ideal para conciliar os fragmentos da Europa, os encantos da diversidad­e e a oportunida­de inédita do multilingu­ismo com uma Europa soberana, unida e democrátic­a”. Assim, em torno do enigma catalão, em torno dos terrores ou das esperanças que tal provação anuncia, eis três opiniões divergente­s que concordam apenas com um fato óbvio: mais do que o Brexit, o que se passa entre Barcelona e Madri remodelará de alto a baixo o destino europeu.

E, por enquanto, a Europa está muda./

Mais do que o Brexit, o que ocorre entre Barcelona e Madri definirá o destino europeu

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