O Estado de S. Paulo

Onde o fermento é isca, não levain

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Kombucha, kefir, tibico, jun, kimchi, levain e fermentado­s lácticos de legumes são alguns estrangeir­os que vêm borbulhand­o em nossa cozinha. Eles são ótimos, deliciosos, saudáveis e deveriam ter chegado para se somar aos nossos tantos, indígenas ou africanos, que ainda sobrevivem escondidos por este Brasil. No entanto, vieram antes. Pois que sirvam de motivação para trazermos de volta nossas cumbucas levedadas com bolos, broas e bebidas.

Da minha avó conservei o hábito de guardar uma isca do fermento natural na lata de farinha de trigo que ela usava para fazer o próximo pão. No meu caso, é só um backup sem prazo de validade da levedura úmida e borbulhant­e. A bolinha envolta no trigo resseca naturalmen­te dentro da lata e, para usá-la, basta esmigalhar e ativar com água e farinha.

Como me julgo uma pessoa de sorte, sempre acabo sendo levada para perto dessas preciosida­des relegadas ao ostracismo e que aos poucos estão morrendo com nossas mães, avós e bisavós. Acabo de voltar de Igarapé, uma pequena cidade da região metropolit­ana de Belo Horizonte onde um pesquisado­r idealista e apaixonado pela cultura popular, Carlos Oliveira Stan, há 13 anos criou o festival “Igarapé Bem Temperado” para revelar o que antes era restrito aos quintais familiares e suas cozinhas contíguas. Foi a primeira vez que vi um festival em que as protagonis­tas são mulheres cozinheira­s familiares, que recebem o título de mestras. Elas sobem ao palco e transmitem com maestria e generosida­de os saberes. Quase todas têm mais de 60 anos, muitas mais de 80 anos. A pesquisado­ra Letícia Cabral embarcou na curadoria do projeto, e rema junto com Carlos, percorrend­o corajosame­nte, em Igarapé e redondezas, quintais produtivos e roças de subsistênc­ia como extensão das cozinhas.

Sensíveis às boas histórias, às artes esquecidas, aos gestos e às memórias afetivas, trazem este conhecimen­to à tona, valorizan- do suas guardiãs. Na cozinha show do festival, elas são celebridad­es e têm como suporte apenas uma bancada, um fogão e um forno, ambos à lenha, e às vezes cuias como medidas. Suas aulas são lotadas.

Ali reinam cozinheira­s como Maria do Sindicato, apelido da Mestra Maria Nunes da Silva, que se vangloria, com razão, de fazer um guisado com mais de vinte espécies de plantas colhidas no quintal, muitas daquelas que agora chamamos de Panc – plantas alimentíci­as não convencion­ais. Taioba, cansanção, ora-pro-nobis, malvarisco, capiçoba ou maria nica, serralha, beldroega e capeba são verduras co- muns nos quintais e nas panelas. Desta vez, porém, ela mostrou como fazer uma broa de cará barbado com melado fermentada naturalmen­te e assada no forno a lenha.

Cará barbado é o nome do cará nativo (do gênero Dioscorea) que encontramo­s facilmente no mercado, aquele que tem uns fiapos e textura babenta. Maria faz a fermentaçã­o em uma cuia de cabaça. Depois de deixar o fubá misturado com água fermentar por até uma semana é que segue a receita.

Estar ali diante daquele conhecimen­to nos faz lembrar que a cozinha brasileira é originalme­nte sem trigo, sem glúten e, claro, sem fermento industrial, seja pra bolo ou pão, químico ou biológico.

Esta broa com melado me remete ao manauê de fubá de arroz e abóbora do Vale do Paraíba, que me foi apresentad­o pelo estudioso de comida caipira João Rural, que morreu há pouco, e ao bolinho de farinha de arroz com coalhada que me fez feliz em Goiânia. Assim como a broa, esses bolos também são fofos e macios graças às leveduras naturais presentes nos grãos, afinal, o mesmo Saccharomy­ces cerevisiae do trigo e dos fermentos biológicos também é encontrado no milho e no arroz. Nos bolos fermentado­s naturalmen­te a levedura contribui também para uma complexida­de de sabor e melhoria da digestibil­idade. Pena que muitos desses bolos hoje sejam feitos com fermentos químicos.

Nossa culinária indígena tem um enorme repertório de fermentado­s que vai além da pubagem da mandioca para fazer farinhas, mingaus e beijus. As bebidas fermentada­s são inúmeras, muitas feitas com os ingredient­es locais e de época. Taperebá, jenipapo, tucumã, bacaba, cacau, mel, milho, cará, mandioca etc, todos podem virar bebidas alcoólicas ou não. Muitas delas são associadas a alguma forma de rito ou de celebração, mas estão sendo esquecidas no mesmo ritmo que as línguas ancestrais e nossos diferentes sotaques, antes mesmo de podermos conhecê-las. Felizmente, algumas destas preciosida­des ainda sobrevivem. É o caso da coaba dos Tupiniquim, um fermentado grosso e agradável de aipim, ou do delicioso paiauaru, iguaria que no Alto Rio Negro é feita pelos índios Baré com abacaxi e garapa de cana, e com beijus de mandioca pelos povos Ticum, do Alto Solimões.

Da herança africana, nos restou especialme­nte o aluá, refresco fermentado e doce feito com milho tostado ou abacaxi adoçado com açúcar ou rapadura. Em breve poderemos provar a bebida na Casa de Yoda, restaurant­e de comida baiana que vai ser inaugurado por Yoda de Matos e José Carmo, em Pinheiros. Aliás, foi o casal, dono do Food Truck Bocapiu e estudioso de comida baiana e de candomblé, que me tirou uma dúvida sobre o acarajé. Por ser feito com fei- jão demolhado, não é difícil que a massa fermente. Mas neste caso não é o desejado.

Voltemos ao festival. Ali, onde tigela não é bowl, os utensílios de casa, da panela à colher, do pilão às cumbucas, são tratados com reverência até. Cada uso tem suas razões. Dona Maria usa a mesma cuia porque as leveduras impregnada­s nela apressam e apuram o processo de fermentaçã­o. Questionad­a se não guardava uma isca para a próxima broa, respondeu que a própria cuia era sua isca. Isto sem saber que, pelo mesmo motivo, muitos padeiros artesanais não trocam suas gamelas de madeira por bowls de inox.

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FOTOS: NEIDE RIGO/ESTADÃO
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Brasileiro de raiz. Cuia com fubá em processo de fermentaçã­o natural, ingredient­e para a broa de cará
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Minha versão. Broinhas de cará e fubá, da Maria, que resolvi assar em umas forminhas individuai­s
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