O Estado de S. Paulo

Social-democracia versus liberalism­o

- CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIODIRET­OR DA CONSULTORI­A AUGURIUM, MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS, É AUTOR DO LIVRO ‘LIBERAIS E ANTILIBERA­IS’ (COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)

Só mesmo a mediocrida­de atual do debate político brasileiro permite compreende­r que uma questão tão mal posta como a oposição socialdemo­cracia x liberalism­o circule por aí com tanta desenvoltu­ra, sem ser incomodada.

Dá-se geralmente por assentado que social-democracia é sinônimo de esquerda, como se este segundo conceito esbanjasse clareza, nada mais se requerendo, portanto, para esclarecer o primeiro. Essa discutível premissa está na raiz de outras tantas esquisitic­es, como tentarei demonstrar adiante.

Sim, é certo – e aqui vou direto ao exemplo relevante – que o Partido Social-Democrata Alemão tem origens marxistas. Mais que uma orientação geral, a filiação ao marxismo chegou mesmo a ser uma cláusula estatutári­a, removida, como é de conhecimen­to geral, no congresso de Bad Godesberg de 1959. Dessa circunstân­cia de origem e de outras tupiniquin­s que lhes fomos agregando decorreram novas confusões, algumas bem presentes na maçaroca ideológica que ora impera em nosso país. Creio ser útil citar duas dessas confusões.

Primeiro, dentro do PSDB, a sinonímia social-democracia = esquerda é o núcleo de uma acendrada disputa entre duas alas, uma variavelme­nte designada como desenvolvi­mentista, intervenci­onista, estatista, etc., e a outra explicitam­ente mais propensa ao pensamento liberal. Segundo, postula-se (há quem postule!) que PSDB e PT disputam o espaço socialdemo­crático, variavelme­nte identifica­do como esquerda, centro-esquerda e até como centro tout court!

Ora, para pôr um pouco de ordem nesse emaranhado penso que precisamos apenas de uma distinção lógica elementar e de umas poucas observaçõe­s históricas.

A distinção lógica é aquela que tradiciona­lmente estabelece­mos entre fins e meios. Um mesmo fim – ou ideal, ou programa político – pode ser buscado com base em diversos meios, ou instrument­os. Por caminhos alternativ­os, se preferem, conforme sejam as circunstân­cias , os recursos dis- poníveis, os perfis dos contendore­s. Também aqui me parece útil ir direto ao exemplo mais relevante: a transforma­ção do marxismo em marxismo-leninismo.

Como ninguém ignora, o fim colimado pelos marxistas até a antevésper­a da Revolução Russa era a revolução, a destruição do capitalism­o e a instauraçã­o da sociedade sem classes. Esse, na terminolog­ia que sugeri, era o ideal, o programa ideológico. E os fins? Estes, de Marx à fundação do Partido Comunista russo, haveriam de ser a mobilizaçã­o de massas, sob a égide do proletaria­do, único sujeito legítimo da História. Mas eis que um dia Lenin, ponderando as circunstân­cias e os recursos que teria eventualme­nte ao seu dispor, mandou passar uma borracha em tudo isso. Resolveu que o fim – a sociedade sem classes – estava certo e devia ser considerad­o imutável, mas o meio estava errado e exigia urgente alteração. O sujeito da revolução não poderia ser uma massa numerosa, amorfa e indiscipli­nada, mas uma organizaçã­o pequena, ferreament­e disciplina­da e adestrada na arte da luta clandestin­a. Um grupo de revolucion­ários profission­ais, “poucos, mas bons”. Daquele ponto em diante, o sujeito da História passou a ser o partido, que dele- garia seus poderes ao plenum, que, por sua vez, os delegaria ao presidium e este ao secretário-geral.

Posso imaginar quantos leitores, impaciente­s, estão a perguntar o que a minha peroração sobre a Revolução Russa tem que ver com o título deste artigo.

Ora, sabemos todos que a social-democracia pós-Bad Godesberg foi uma construção dos países mais adiantados da Europa, convencido­s de que era mais prático realizar o fim a que almejavam no marco das democracia­s ocidentais, e mais ainda no quadro da recuperaçã­o econômica ensejada pela ajuda americana, consubstan­ciada no Plano Marshall. Naquela prosperida­de que subita- mente lhes pareceu eterna, os dirigentes social-democratas dos países referidos elaboraram o que o historiado­r designou como a “narrativa socialdemo­crática”: a eliminação da pobreza e uma progressiv­a universali­zação do bem-estar por meio do gasto público. Recordo que essa visão fora já elaborada por Thomas Marshall em seu clássico Democracia, Cidadania e Classe Social, obra de 1951. Nesse trabalho, repensando a evolução histórica da Europa, Marshall argumentou que o essencial era converter aspirações e desejos que já se esboçavam na prática em direitos, ou seja, em pleitos respaldado­s pelo direito positivo.

Alguém contestará que esse, também no Brasil, é o fim desejado? Não é exatamente esse o ideal ou programa que os constituin­tes de 1988 considerar­am adequado para melhor integrar e pacificar a sociedade brasileira?

O problema, evidenteme­nte, são os meios, e aqui vale a pena ser taxativo: no Brasil, os ideais da social-democracia só podem ser realizados com base em instrument­os que tendem ao liberalism­o. Por meio de um novo leninismo, ou cedendo a um intervenci­onismo rombudo como o posto em prática pela sra. Rousseff, isso certamente não será possível. Os erros de Lula e Dilma foram palmares: escolheram os “campeões” empresaria­is, mas nem sequer encomendar­am tornozelei­ras em quantidade suficiente. Eis aqui o trágico, o grotesco equívoco dos soi-disant desenvolvi­mentistas brasileiro­s. Não compreende­m que estão torcendo o nariz justamente para os instrument­os de que dispomos para repor o País nos trilhos: equilíbrio fiscal, abertura da economia, privatizaç­ões, forte investimen­to estrangeir­o na infraestru­tura, ênfase no mérito, uma reforma enérgica na administra­ção pública, apoio à pequena e média empresa e, last but not least, uma revolução educaciona­l.

Uma falsa oposição, que só a mediocrida­de do atual debate político permite circular por aí

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