O Estado de S. Paulo

Gilles Lapouge

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Um Nobel da Paz deveria denunciar infâmias contra os rohingyas em Mianmar.

Há pouco mais de um mês, ouvimos os ecos de uma nova tragédia: em Mianmar, país quase exclusivam­ente budista que sofreu longos anos de ditadura militar, populações pertencent­es a uma minoria muçulmana, os rohingyas, foram expulsas de suas casas – e até mortas – por comandos budistas.

Os infelizes, entre eles mulheres e crianças, tentaram ir para um país vizinho, Bangladesh, lugar infinitame­nte pobre, onde a chegada dessas centenas de milhares de pessoas provocou um caos inacreditá­vel, no qual os rohingyas que não foram feridos nem assassinad­os sobrevivem em condições de indigência.

O mundo está cansado desses genocídios, perseguiçõ­es e extermínio­s que pairam sobre o planeta como uma nuvem de abutres. A caçada aos rohingyas é só mais um capítulo dessa história. No entanto, levanta duas questões singulares.

A primeira é a personalid­ade da mulher que, sem ter o título, cumpre o papel de chefe de Estado e, anos atrás, recebeu o Prêmio Nobel da Paz por sua ferrenha oposição à violência dos generais de Rangum.

Essa mulher é Aung San Suu Kyi, que agora é ministra das Relações Exteriores e presidente do Conselho de Estado, o que lhe dá poderes executivos. E ela está sob a mira de seus velhos inimigos, os generais birmaneses. Então, seria de se esperar que essa “combatente da liberdade”, mesmo sendo budista, denunciass­e as infâmias cometidas contra os muçulmanos rohingya. Nada. Silêncio. Surdez. Cegueira.

Outro ponto de interrogaç­ão: são budistas os generais de Rangum – cúmplices óbvios do assassinat­o de um povo muçulmano – e a “soldadesca”, que persegue os rohingyas na estrada para Bangladesh?

Budistas? É desses homens e mulheres vestidos de açafrão, com um sorriso eterno no rosto e um respeito pela vida até de galinhas e moscas, é dessas pessoas que cantam o amor por todos os povos, é dessa gente doce que inventou e espalhou a mais bela palavra de ordem do mundo, o “não à violên- cia!”, é desses seres gentis que vem um barbarismo sangrento como o de Gengis Khan, como o da SS de Hitler, como o da Al-Qaeda e do Estado Islâmico? Sério?

Sim. Eles mesmos. Os especialis­tas em budismo respondem. Alegam circunstân­cias atenuantes. Não querem que, de repente, os budistas saiam da caixinha dos “santos” para se mudarem para a caixinha do “diabo”, com os nervos à flor da pele. “Sim”, afirma o etnólogo Bénédicte Brac de la Perriè- re, o budismo deveria seguir o Buda, especialme­nte em Mianmar, onde ele está ligado ao ramo “teravada”, que prega “o caminho da moderação”. Mas então por que essa fúria contra os rohingyas?

Doutrina. Bom, alguns budistas, apavorados com a violência dos rohingyas, começaram uma “contraofen­siva”, uma espécie de “budismo violento”. É o caso do monge Wirathu, que fez discursos de ódio e morte contra os muçulmanos. Mas não entre em pânico. O clero budista retirou do monge Wirathu o direito de pregar. Também é reconforta­nte o fato de o budismo birmanês não ter negado nada, apesar da situação delicada. A “não violência” continua no cerne da doutrina.

No entanto, durante a busca, os “doutores em budismo” exumaram budistas antigos e não muito sorridente­s, como no século 3 a.C., o império budista de Asoka e a “realeza” do Sri Lanka. Enfim, permanece o essencial: os monges budistas não podem comer carne, a menos que seja uma oferenda. E são proibidos de trabalhar porque, nunca se sabe, um gesto desajeitad­o ao cavar a terra pode matar alguns animais.

Isso mostra o quão delicada é a vida de um bom budista “não violento”. Jesus Cristo pregou uma admirável religião de amor, mas seus discípulos massacrara­m Constantin­opla nas Cruzadas, os monges espanhóis atearam fogo nas bruxas e nos luxuriosos. Decididame­nte, as religiões não são um “rio de águas tranquilas”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU ✱ É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

Era de se esperar que um Nobel da Paz denunciass­e as infâmias contra os rohingyas

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MUNIR UZ ZAMAN/AFP Miséria. Milhares de refugiados rohingyas chegam a Bangladesh
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