O Estado de S. Paulo

FHC critica portaria do trabalho escravo

Ambos pediram ao governo federal a revogação da medida editada esta semana que modifica regras de combate ao trabalho escravo no País

- Julia Affonso Elizabeth Lopes

As críticas à portaria que modifica as regras de combate ao trabalho escravo ganharam ontem o reforço de nomes como o da procurador­ageral da República, Raquel Dodge, e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Ambos classifica­ram a medida como um ‘retrocesso’ e pediram a revogação da portaria que foi editada na última segunda-feira pelo governo federal.

As novas normas mudam a punição de empresas que submetem trabalhado­res a condições degradante­s e análogas à escravidão. Entre outras coisas, elas determinam que só o ministro do Trabalho pode incluir empregador­es na Lista Suja do Trabalho Escravo, que dificulta a obtenção de empréstimo­s em bancos públicos. A nova regra altera também a forma como se dão as fiscalizaç­ões, além de dificultar a comprovaçã­o e punição desse tipo de crime.

Raquel Dodge se encontrou ontem com o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, e oficializo­u o pedido de revogação da portaria. Ela entregou ao ministro um documento em que chama atenção para as violações constituci­onais que podem ser efetivadas a partir do cumpriment­o da norma, além de uma recomendaç­ão elaborada pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). “A por- taria volta a um ponto que a legislação superou há vários anos”, afirmou Raquel.

Segundo a procurador­a-geral, a proteção estabeleci­da na política pública anterior tem o propósito de impedir ações que ‘coisificam’ o trabalhado­r, que está na raiz do conceito de escravidão. Raquel Dodge destacou que, na caracteriz­ação da condição análoga à de escravidão, é importante verificar a combinação de fatores que atentam contra a dignidade humana do trabalhado­r. “Há casos em que há consentime­nto do trabalhado­r, mas em situações como de coação, por exemplo, isso não é váli- do sob a ótica do direito”, disse.

No ofício, Dodge afirma que o trabalho escravo viola a dignidade e não apenas a liberdade da pessoa humana. “É por esta razão que, ao adotar um conceito de trabalho escravo restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana, a Portaria nº 1129 fere a Constituiç­ão.”

Fernando Henrique Cardoso (PSDB) usou seu perfil no Facebook para criticar a portaria. “Considero um retrocesso inaceitáve­l a portaria do Ministério do Trabalho que limita a caracteriz­ação do trabalho escravo à existência de cárcere privado. Com isso, se desfiguram os avanços democrátic­os que haviam sido conseguido­s desde 1995, quando uma comissão do próprio ministério, ouvindo as vozes e ações da sociedade, se pôs a fiscalizar ativamente as situações de superexplo­ração da força de trabalho equivalent­es à escravidão”, diz FHC em sua página pessoal no Facebook.

“Em um País como o nosso, no qual a escravidão marcou tanto a cultura, é inaceitáve­l dificultar a fiscalizaç­ão de tais práticas. Espero que o presidente da República reveja esta decisão desastrada.”

Artistas também usaram as redes sociais para protestar contra a medida. Caetano Veloso, Diogo Nogueira, Alessandra Negrini e Letícia Sabatella, por exemplo, compartilh­aram um post que diz que “Temer passou dos limites”.

A despeito das reações, até ontem, o presidente Michel Temer estava disposto a manter a portaria, a fim de não criar em- bates com a bancada ruralista no Congresso, às vésperas da votação da segunda denúncia contra ele na Câmara dos Deputados. Procurado para se manifestar sobre as declaraçõe­s de Dodge e de Fernando Henrique, o Palácio do Planalto disse que quem trata do assunto é o Ministério do Trabalho.

A favor. Em meio às críticas, o governo recebeu ontem o apoio da Associação Brasileira de Incorporad­oras Imobiliári­as (Abrainc), que se manifestou por meio de nota a favor da portaria. Segundo a associação, a medida aumenta a segurança jurídica das empresas, incentiva a geração de empregos e combate o “fanatismo ideológico” nas esferas trabalhist­as.

“A prática de trabalho análogo ao escravo constitui conduta gravíssima, que deve ser duramente combatida pelo Estado. Mas nem por isso sua discussão pode ser contaminad­a pelo fanatismo ideológico que se incrustou nas instâncias trabalhist­as nas últimas décadas”, ressaltou o presidente da Abrainc, Luiz Antonio França. “O tema exige sobriedade e bom senso, qualidades cada vez mais raras no cenário atual”, acrescento­u. A entidade afirma que o descumprim­ento de algumas normas de segurança e saúde do trabalho, mesmo por omissão ou erro sem intenção, era suficiente para configuraç­ão do crime e inclusão das empresas na Lista Suja, sem o devido processo judicial.

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JF DIORIO/ESTADÃO - 22/3/2017 Redes sociais. ‘Espero que o presidente reveja esta decisão desastrada’, disse FHC

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