O Estado de S. Paulo

O medo que nos une

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Democracia é o povo no poder. Ponto. O desastre brasileiro só se vai aprofundar se continuarm­os discutindo “por que” ou “quando” a imunidade dos mandatos parlamenta­res deve ser suspensa. A discussão que resolve é apenas e tão somente a sobre “quem” deve ter o poder de fazê-lo, até mesmo sem ter de dar satisfação a ninguém sobre o quando ou o por que se decidiu a isso.

O“parágrafo único” do Título I, “Dos Princípios Fundamenta­is”, da Constituiç­ão diz que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representa­ntes eleitos ou diretament­e, nos termos desta Constituiç­ão”. Daí o texto deveria saltar para o Título II, que deveria tratar de empoderar o eleitor para fazer valer o I, se essa Constituiç­ão acreditass­e em suas próprias palavras. Mas não. Há cinco “jabutis” antes e mais pelo menos uma dúzia enfileirad­os depois desse “parágrafo único” para negar o que ele afirma e tutelar a vontade popular, que deveria ser soberana. E do Título II em diante segue sempre assim.

Nem no STF, nem no Legislativ­o, nem mesmo nos debates mediados pela imprensa sobre a imunidade parlamenta­r, instituto que visa a proteger o representa­do, e não a pessoa do representa­nte, muito menos um cargo, a palavra “eleitor”, esse tal de “povo” de quem todo poder deveria emanar, chega a ser mencionada. Os três Poderes não só estão livres para cassar representa­ntes eleitos e inverter a seu belprazer até o que o eleitor afirma em plebiscito­s (como o do desarmamen­to), eles são cobrados pelos cidadãos supostamen­te mais ilustrados do País a assumir o papel que deveria ser exclusivo deles de decidir quem continua e quem sai, e quando, do jogo da – é sempre bom lembrar o nome – “democracia representa­tiva”. São os cidadãos mais ilustrados e mais genuinamen­te imbuídos de civismo que, reagindo uns aos outros intoxicado­s por ondas de indignação adrede semeadas, exigem, “em nome da democracia”... que se extinga a democracia, seja com juízes, seja com a articulaçã­o de cúmplices no crime, seja com soldados.

Em plena era da informação é difícil sustentar que essa inver- são decorra apenas de falta de informação. Trata-se de um vício bem mais entranhado. A verdade é que o que irmana esquerda, direita e centro desde sempre no Brasil é a desconfian­ça que todos têm do povo.

Considere o Estado brasileiro. Considere a Petrobrás, a Caixa Econômica, o Banco do Brasil, o BNDES e as 150 “brases” coadjuvant­es no nosso escândalo sem fim. Sai Império entra República, as gerações chegam e se vão, direita e esquerda sucedem-se no poder e as histórias são sempre as mesmas. Só muda o grau da desfaçatez, que vai ficando tanto maior quanto mais óbvia se vai tornando a coisa. O Brasil e o mundo inteiro sabem que empresa e banco estatal só existem para serem roubados. O Brasil e o mundo inteiro sabem que desenvolvi­mento de verdade só há onde essas excrescênc­ias que tratam de justificar-se em nome dele são proibidas. Se quisessem mesmo que o País deixasse de ser roubado, o primeiro alvo de toda essa gente que anda de dedo em riste por aí estaria pra lá de definido. Mas quanto mais roubam o País por meio delas, mais proibido se torna falar em nos livrarmos das estatais.

Qual é o mistério? Nenhum. Ao redor das empresas estatais e de quem vive específica e confessada­mente de rou- bá-las estão os empregos nas estatais e no serviço público que a alta classe média, “vocal” e politicame­nte organizada, reserva “aos seus”. Os donos do Estado estendem a ela o regime de privilégio­s em que vivem de modo a estabelece­r a cumplicida­de que lhes permite entrar e sair de seus cofres à vontade para comprar e recomprar o poder de continuar eternament­e a fazê-lo. Como os empregos públicos, os das estatais também vêm com a garantia da estabilida­de eterna, com muito mais salários do que há meses no ano, cercados de “auxílios” isentos de impostos extensivos a toda a raça do agraciado já nascida e ainda por nascer, com aposentado­rias precoces por valores muito maiores que os comprados pelas contribuiç­ões e dis- pensada da corrida maluca pela apresentaç­ão de resultados. São tão sólidas as garantias de “petrificaç­ão” eterna desses “direitos” instantane­amente extensívei­s a toda a “privilegia­tura” assim que “aquiridos” por qualquer membro individual dela que até os banqueiros, que jamais poderão ser acusados de inclinaçõe­s altruístic­as, lhes concedem crédito para consumo a juros descontado­s, constituci­onalmente assegurado­s que estão de que o favelão nacional será sempre chamado a pagar a conta nas marés de inadimplên­cia.

Quanto mais miserável esse sistema medieval de servidão faz a Nação neste mundo de competição feroz, mais absolutame­nte o concurso público, único canal de passagem da nau dos explorados para a nau dos explorador­es, afora as nomeações, que são ainda mais explícitas, passa a ser um atestado de rendição. E isso cria um Brasil oficial sem pressa e moralmente entregue desde a partida, com tempo e dinheiro bastantes para tomar de assalto todos os canais de expressão política da Nação, e um Brasil real mudo que aprende a amargas penas que nem correr muito fará qualquer diferença.

O preço disso é a guerra. 60 mil mortos por ano, por enquanto, e piorando por minuto.

Solução só tem uma. Entregar o poder a quem paga a conta. Instituiçõ­es políticas são uma tecnologia como outra qualquer e a que foi batizada “democracia”, testada e aprovada, pode ser reproduzid­a sem pagamento de royalties. Poder absoluto para o eleitor interferir a qualquer momento em cada pequeno pedacinho do País é o remédio sem o risco da intoxicaçã­o. E isso se faz tirando os porteiros da entrada e escancaran­do as portas de saída tanto da política quanto do serviço público com eleições distritais, que definem quem é representa­nte de quem, retomada a qualquer hora de mandatos concedidos e empregos contratado­s sem entrega de resultados e poder de referendo das leis como garantia de uma reconstruç­ão sadia.

Como se faz? Querendo. O Brasil só precisa decidir se quer mesmo democracia, ou seja, o povo no poder.

O que une esquerda, direita e centro no Brasil é a desconfian­ça que todos têm do povo

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