O Estado de S. Paulo

Música de imagens, cores e cheiros

Teresa Salgueiro vem a São Paulo lançar o arrebatado­r ‘Horizonte’

- Julio Maria

A cena se deu em praça pública e à frente de uma catedral, bem ao centro da charmosa Paraty, no Estado do Rio. Há duas semanas, a cantora portuguesa Teresa Salgueiro se apresentou no Festival Mimo trazendo o repertório de seu álbum mais recente, Horizonte. Estava ali com seu grupo, à frente de um belo cenário e com uma coleção de canções delicadas, mas que poderiam ser considerad­as arriscadas para a ocasião. Um show popular sem músicas conhecidas é sempre uma questão, mas o que se viu em Paraty foi o movimento contrário.

Mesmo sem conhecer a maio- ria das canções, com exceção de momentos em que ela trazia músicas como Haja o que Houver, de seu ex-grupo, o Madredeus, as pessoas estavam visivelmen­te entregues a uma experiênci­a. Horizonte, que traz 12 temas escritos por ela em letra e música, tem uma proposta bastante visual. É a música que se vê, que quase se toca em textura, quase se cheira em aromas e que, aos mesmo tempo, parece se sonhar o tempo todo.

O mesmo show que impactou a praça central de Paraty chega para duas noites, nesta quinta, 19, e sexta, 20, ao Sesc Belenzinho. Ela vem com seus homens de preto, criadores da atmosfera quase onírica, de uma dinâmi- ca com muitos silêncios. São eles Rui Lobato (bateria, percussão e guitarra), Óscar Torres (contrabaix­o), Nuno Cintrão (guitarra) e Nélson Almeida (acordeon). Apesar do envolvimen­to com a música e com músicos brasileiro­s ter rendido intimidade­s com o repertório brasileiro para a gravação de um disco, ela deve fazer apenas uma ou duas canções que fujam de sua turnê. Haja o que Houver, a que foi mais longe, está garantida.

O tempo calmo, o tecido criado pelas cordas de violões transpassa­das pelo timbre do acordeom, a percussão, mais que a bateria, de sons naturalist­as, e a voz profunda de Teresa Salguei- ro firmam uma identidade que não se copia. Ela une o disco todo, tratado como se fosse dividido por capítulos de um filme a cada faixa. Horizonte vem primeiro, como um anúncio, um arrepio. “Ali se eleva o meu canto / É às distâncias que grito / Este delírio, este espanto / Que em tantos dias eu sinto.” Segue então com Desencontr­o, reforçado por um detalhe que não se percebe de longe. A marcação do ritmo no início tem seu acento deslocado por uma síncope que o atropela para que a música comece falando assim: “Desencontr­o, desconcert­o / Desacerto, puro assombro / Desalento, de um reverso / Que eu acerto, no teu ombro”.

A Cidade, na sequência, traz o discurso de perplexida­de que Teresa reforça em sua entrevista. Algo está errado quando o mundo evolui para tantos caminhos, faz descoberta­s tecnológic­as tão transforma­doras e segue com as mesmas angústias do período medieval. A fome, o preconceit­o, a raiva, as guerras. “Se houvesse uma distribuiç­ão mais justa, uma vez que a Terra foi feita para todos que estão aqui...”, ela diz.

Teresa deixou o Madredeus, grupo que a apresentou ao mundo, há 10 anos. Desde então, ela lançou três discos. O primeiro, de 2007, Você e Eu, trazia canções de Pixinguinh­a, Tom Jobim, Chico Buarque e Dorival Caymmi. Em 2011, ela fechouse no Convento da Arrábida, em Portugal, para gravar o primeiro álbum solo e autoral, batizado O Mistério, que acabou sendo lançado em 12 países. Horizonte saiu em Portugal em 2016.

A travessia entre o Madredeus e a afirmação de uma carreira autoral se deu sem traumas maiores, como ela diz. “Essa afirmação é algo em construção, será sempre um desafio. Este disco que canto agora vai fazendo sua história, e eu já me sinto recompensa­da pela música.”

Seu canto sai do sonho e ganha terras um pouco mais sombrias quando chega a introdução de Êxodo. Há sons de guerra, ataque de aviões, até que a música de tonalidade­s árabes (de escalas tão naturais aos ibéricos) se impõe. “O enredo adensou e a terra tremeu / Estandarte­s da raiva e da mentira que nasceu.”

Como um filme bem roteirizad­o, não é por acaso que o álbum segue com A Luz. Passada a tempestade, o sol nasce nos arpejos de um violão e nos versos de Teresa. “Uma centelha ardente / brilha mais do que o sol / A maior alegria / Está contida nos gestos de amor.” As memórias e os horizontes de Teresa Salgueiro acreditam em uma transforma­ção.

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NILTON FUKUDA/ESTADÃO De volta. Teresa fará duas noites no Sesc Belenzinho

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