Meio século tropicalista
Após 50 anos, Oficina volta com o ‘Rei da Vela’, marco do teatro brasileiro
Para quem não viveu o fim dos anos 1960, imaginar o teatro brasileiro como o catalisador de um movimento artístico e estético que foi capaz de inspirar artistas como Caetano Veloso, Hélio Oiticica e Glauber Rocha e ainda enfrentar a censura, é um pensamento inédito. Neste 2017, a montagem do espetáculo O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, completa 50 anos com a força e rebeldia do Teatro Oficina, neste sábado, 21, no Sesc Pinheiros.
O intervalo entre o lançamento da obra de Oswald e a estreia da peça é parte do segredo da montagem que foi o berço da Tropicália. Em 1937, quando o texto foi publicado, o modernismo já tinha desembarcado na literatura, nas artes plásticas e na música brasileira. Mas no teatro, o movimento que só chegou nos anos 1940, ainda correspondia à estética europeia de 1890. Até então, os atores em São Paulo só tinham duas linhas para seguir: o teatro burguês do Teatro Brasileiro de Comédia ou o realismo do Teatro de Arena. No entanto, quando o ator Renato Borghi trouxe o texto oswaldiano a um dos ensaios do Oficina, ao lado de nomes como Etty Fraser, Dina Sfat e Othon Bastos, fez-se um novo caminho. “Ele chegou e leu um trecho. No final, aquilo foi a confirmação de que seria nosso próximo trabalho e de que ele viveria o Abelardo I, com toda a ironia e intensidade”, recorda Zé Celso.
A obra de Andrade mira a crise financeira de 1929 e constrói uma farsa em três atos centrada na vida do fabricante de vela – outro apelido para agiota – Abelardo I, que se aproveita do colapso da Bolsa e empresta dinheiro a altos juros. Os envolvidos são figuras do imaginário contemporâneo em caricatura da tradição, dos bons costumes e da propriedade privada, como o americano Mr. Jones, a lésbica Heloísa de Lesbos que se casa por interesse, seu pai, um latifundiário, um intelectual, entre outros, que nessa remontagem ganham caras novas. “O americano é o Mr. Trump e será, como todos os outros, tarado pelo capitalismo”, conta o diretor.
Para Borghi, que completou 80 anos no mesmo dia que Zé Celso, o desafio de reviver o protagonista 50 anos mais tarde dói no corpo. “Não posso ficar muito tempo em pé e es- tou com pinos de titânio na coluna, se eu pular, eles saem pelo céu da boca”, brinca. Para ele, a obra de Andrade já era um perigo quando foi escrita. “Ele tinha sido ameaçado de morte, e quando decidimos fazer a peça, esse histórico de perseguição veio junto. Chega um momento em que a burguesia cansa da sua máscara liberal”, em referência ao texto.
Para Zé Celso, até a estreia da montagem original, colocou o Oficina em outro patamar. “Antes, nós só estudávamos o teatro europeu, desde a dramaturgia até o treinamento do ator. Com Oswald conseguimos inaugurar um teatro e uma arte brasileiros.”
O impacto foi grande, mas dividiu o público e a crítica na época, além de sofrer com a censura. Mesmo assim é possível intuir que O Rei da Vela seria o candidato a pôr o teatro brasileiro na modernidade, se Vestido de Noiva, dirigido por Ziembinski, não tivesse estreado bem antes, em 1943. No fim das contas, o resultado superou as expectativas e a peça foi embaixadora da Tropicália no mundo. “Oswald não falava em esquerda ou direita, ele falava na língua do poeta, que é a língua de gente”, acrescenta.
Ao lado do diretor e de Borghi, o premiado cenógrafo Hélio Eichbauer completa o trio que viveu a montagem original. Sem grandes mudanças no cenário e figurinos, o carioca que trabalhou com o cenógrafo checo Josef Svoboda nos anos 1960 e passou por teatros na Alemanha, França, Itália e em Cuba, recorda a inspiração para os murais. “Na Europa, eu aprendi a teatralidade, a estética do circo e do palhaço, mas Cuba trouxe a referência do tropical, com bananas, palmeiras e a música latina”, dia Zé Celso ao recordar que chegou a incendiar um dos murais em protesto contra a ditadura militar, o mesmo que ilustrou a capa de Estrangeiro (1989), de Caetano Veloso.
Para o diretor, de lá para cá, o mundo também conseguiu se remontar, o que quer dizer que os conflitos continuam, entre eles a histórica briga entre o Teatro Oficina e o Grupo SS, contra o plano de construção das torres no terreno ao lado do teatro projetado por Lina Bo Bardi, tombado pelo Iphan e considerado o melhor do mundo pelo j ornal The
Guardian. “Depois da reunião com o prefeito João Doria, o Silvio me ofereceu dinheiro para deixar o local”, conta em referência ao encontro realizado em agosto. “Se alguma coisa acontecer com aquele teatro, eu saio do Brasil.”
Antes, só estudávamos o teatro europeu. Com Oswald de Andrade, inauguramos um teatro e uma arte brasileiros” Zé Celso