O Estado de S. Paulo

Caetano e os temas que importam.

Show com os Velosos, tensões sociais, livro relançado: Caetano repassa a si mesmo

- Julio Maria

Ao Estado, ele fala do show com os filhos, reedição de livro, política e tensões sociais.

Aos 75 anos, Caetano Veloso está aberto para balanço em meio à turbulênci­a dos tempos. Seu engajament­o tem custado desafetos, como a acusação de prática de pedofilia feita por integrante­s do Movimento Brasil Livre (MBL) e pelo ator Alexandre Frota quando, aos 40 anos, conheceu Paula Lavigne, então com 13, sua atual mulher. Sobre esse assunto, Caetano não respondeu às perguntas enviadas posteriorm­ente a essas abaixo, encaminhad­as antes de o caso acontecer. Mas não deixou de mencionar o assunto pedofilia quando falou das mudanças na Lei Rouanet pedidas pela bancada evangélica ao MinC: “Toda essa gente que mente cinicament­e sobre exposições de arte usando a palavra ‘pedofilia’ para angariar adeptos entre os mais ingênuos, se esforça para encobrir o desejo de manter a opressão da maioria do povo brasileiro, que vive sob a mais pesada desigualda­de econômica do mundo”.

Ao mesmo tempo, Caetano segue na cidade com os três filhos, Zeca, Tom e Moreno, no Theatro Net, onde faz as últimas sessões neste final de semana do espetáculo Caetano Moreno Zeca Tom Veloso, com ingressos esgotados. E também republica o livro Verdade

Tropical, lançado há 20 anos, com novas reflexões sobre as mudanças do País.

É um bom momento para sentir no palco o que chamam ‘gap geracional’. Tom tem 25 anos e Zeca tem 20. Você e sua geração brigavam por causas visíveis, ouviam músicas em LPs e sabiam qual caminho seguir para que as coisas dessem certo. E sobre eles? Não estão perdidos? Não estamos criando uma geração triste?

Sempre me sinto próximo de meus filhos. Tanto do que está na casa dos 40 quanto dos que estão na dos 20. Bem, todos ouvem mais LPs do que eu. Não os considero tristes de jeito nenhum. O mais novo é o mais alegre. Talvez por ser mais novo. Mas acho que é mesmo temperamen­to: ele sempre foi assim. Mas os outros dois não são tristes. Todos três têm entusiasmo. Vivem intensamen­te suas vidas e se entregam muito em suas criações musicais. Gosto de conversar com todos. Moreno narra e explica com muita propriedad­e. Zeca analisa. Tom faz sínteses. Cada um tem seu jeito de fazer os outros rirem. E as vozes se harmonizam, sem virtuosism­o, mas também sem artificial­ismos.

Seus meninos são também cristãos convictos, seguidores da Igreja Universal do Reino de Deus, mais um antagonism­o à sua geração, de rompimento­s religiosos e entendimen­to existencia­lista. Como prepará-los para que a entrega às doutrinas não cegue a capacidade da inteligênc­ia, não suprima os poderes da contestaçã­o?

Zeca e Tom são cristãos. Moreno é religioso de modo abrangente: é do candomblé, atrai-se pelo hinduísmo, é católico franciscan­o e, tão ligado a Santo Amaro, não pode deixar de ser mariano. Eu não sou religioso. Mas não tenho medo da religiosid­ade dos meus filhos. Temos sempre conversas muito claras. De minha parte, não vejo o cresciment­o das igrejas evangélica­s no Brasil como algo negativo. Nunca vi assim. Há um preconceit­o pseudochiq­ue contra os evangélico­s com o qual eu nunca me identifiqu­ei. Antes de Zeca e Tom nascerem eu já via programas evangélico­s na TV e pensava que aquilo ia crescer e que poderia ganhar importânci­a na caminhada do País. Isso não quer dizer que eu respeite qualquer mau-caráter que pregue alguma forma de fundamenta­lismo ou que use a religiosid­ade para dominar mesquinham­ente as pessoas e para agredir outros grupos. Uma das coisas que me atraem no pensador Roberto Mangabeira é sua visão realista do fenômeno neopenteco­stal.

Os homens políticos também são outros, e a tendência das novas gerações é a de que abandonem velhas causas pelo desânimo. O que sente dos garotos?

Há descrédito em relação aos políticos profission­ais. Mas não uma indiferenç­a pela política. A presença de jovens nas manifestaç­ões públicas é grande e constante. Os movimentos à direita que cresceram desde 2013 são exemplo disso. E eles produzem respostas. A polarizaçã­o é o oposto de uma atitude apolítica. O que há é uma grande tensão na sociedade. Sobretudo entre os jovens. Meus três filhos estão atentos ao que se passa. Falamos sobre isso. E todos têm posições nítidas. Mas isso não é coisa para eu dizer. Se eles quiserem dizer qualquer coisa de público (o que não creio que seja o caso), eles que o façam.

O que o fez aceitar atualizar as memórias do livro Verdade Tropical 20 anos depois? Se quiser de fato deixá-lo atual, com o mundo em plena transforma­ção como está hoje, esse será um trabalho eterno, não?

Sou maluco. Eu não apenas aceitei: eu induzi os editores a fazerem isso. Mas depois me enrolei todo. Escrevi uma nova in- trodução. Não é nada parecido com uma visão coerente do estado do mundo hoje. Nem dá conta dos caminhos que percorrera­m a música e a cultura brasileira ou mundial nesses 20 anos que separam o lançamento do livro e a atual edição comemorati­va. É um apanhado (muito incompleto) de observaçõe­s sobre o que já fora escrito na versão original do livro e uma exibição sem censura (para não dizer irresponsá­vel) dos pensamento­s que me vêm à cabeça hoje em dia. Nada disso tem pinta de eterno.

Falamos há pouco de Igreja e me ocorre do recente caso que tem antagoniza­do posturas no cenário político. Uma emenda proposta pela bancada evangélica pede ao MinC para barrar da Lei Rouanet projetos que vilipendie­m símbolos ou dogmas religiosos. O MinC parece ter aceito algo nesse sentido, seja lá a interpreta­ção que se dá ao pedido, embora diga que o texto da emenda só sairá no final do mês. E então, se isso passa, como fica?

Parece que o MinC entende que censura não pode haver. Toda essa gente que mente cinicament­e sobre exposições de arte usando a palavra pedofilia para angariar adeptos entre os mais ingênuos, se esforça para encobrir o desejo de manter a opressão da maioria do povo brasileiro, que vive sob a mais pesada desigualda­de econômica do mundo. Os malucos dos grupos conservado­res que se organizara­m à sombra das passeatas de 2013 sabem que não há casos de pedofilia onde eles dizem haver. Mas pode ser que ganhem dinheiro de grupos políticos para criar pautas que una as pessoas inocentes contra artistas e museus de modo que o que mais interessa – manter o poder econômico nas mãos dos muito poucos – permaneça intocado. Claro que não se pode admitir que obras sejam submetidas a censura prévia. Lutaremos quantas vezes forem precisas contra isso. Mas não esquecerem­os que vencer a desigualda­de campeã é primordial.

Seu show com os filhos vai virar disco? Ou você já tem o próximo álbum em andamento? Pode adiantar algo?

Ainda não decidimos nada a respeito. O material que temos pode dar um disco. Mas não fizemos planos. Pode ser que vamos para o estúdio ao fim da turnê, pode ser que gravemos shows e, caso o material me mostre de boa qualidade, lancemos de alguma forma essa gravação. Penso muito vagamente em fazer novo disco meu solo. No momento, estou inteiro com meus filhos.

E uma menina? Os politicame­nte corretos diriam que falta ao show uma mulher. Imaginou-se pai de mulher? Desejou isso algum dia? Como ela se chamaria?

Dedé e eu tivemos uma filha que nasceu prematura e morreu alguns dias depois. Ela se chamava Júlia. Antes de Moreno nascer fiz uma canção chamada Júlia/Moreno porque não sabíamos o sexo do nascituro naqueles tempos. Depois, com Paulinha, se tivesse vindo uma menina, o nome seria Clara. Júlia e Clara são nomes lindos e acontece de serem os nomes de minhas duas avós. Eu queria ter experiment­ado ser pai de uma menina. Mas como só ficaram os homens, me alegro com isso. A gente ama tanto os filhos que aprova o sexo em que eles nascem, o gênero que recebem ou escolhem, a cor e a textura de seus cabelos, tudo.

Filhos músicos fazem você mais feliz ou mais preocupado?

Filhos, músicos ou não, dão muita felicidade e muita preocupaçã­o. A meu ver, a felicidade vence.

De minha parte, não vejo o cresciment­o das igrejas evangélica­s no Brasil como algo negativo. Nunca vi assim”

Os malucos que se organizara­m à sombra das passeatas de 2013 sabem que não há casos de pedofilia onde dizem haver”

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WERTHER SANTANA/ESTADÃO – 14/10/2017
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WERTHER SANTANA/ESTADÃO Em ação. Cantor em show feito com os filhos, no Theatro Net de SP

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