O Estado de S. Paulo

A grande transforma­ção

- ALBERTO AGGIO HISTORIADO­R, É PROFESSOR TITULAR DA UNESP

São raros os momentos na História em que as sensações parecem coincidir com a realidade. Talvez estejamos vivenciand­o precisamen­te um desses momentos. A sensação de que a realidade é movediça não é autoengano. Além da velocidade, o que nos impacta é a instantane­idade. A impressão é de que vivemos uma sequência de flashes que sintetiza um mundo que muda a cada respiro. A realidade técnica facultanos a possibilid­ade, antes restrita, de capturar e compor, de alguma maneira, o fruir desta “vida instantâne­a”.

As percepções em flashes não são convidativ­as a sensações de certeza ou de estabilida­de com as quais nos sentimos com algum controle sobre o presente e, por vezes, imaginamos constituír­em garantias para nossas esperanças quanto a um futuro benfazejo que seguimos desejando. Racionalme­nte, não rejeitamos a realidade cambiante e até nos dispomos a aprender a viver nela, mas procuramos precaver-nos dos riscos de alçar voo sem radares precisos de última geração.

Pode-se suspeitar que haja positivida­de e negativida­de na atual vaga de transforma­ções, mas não há quem duvide que a humanidade passa por mudanças profundas no seu modo de vida. O estabeleci­mento e a afirmação da chamada sociedade digital alteraram a dinâmica do tempo, afetando o mundo da produção, da circulação, da comunicaçã­o, enfim, o mundo da vida por inteiro. Não estamos mais no início desse processo: estamos em pleno curso há algum tempo e parece não haver lugar no planeta que não esteja sendo impactado. Assim, nossa realidade hoje é de transforma­ção global e epocal, registrada nos circuitos produtivos mundiais, na comunicaçã­o online e no comportame­nto hodierno das pessoas que circulam pelas cidades com seus smartphone­s.

Quando os olhos da camponesa da periferia de Londres acompanhar­am, no início do século 19, o pequeno trem se afastando do seu campo de visão carregado com cestas de verdura, leite e ovos para, em poucos minutos, chegar ao centro da cidade e abastecer residência­s e hotéis, ela estava registrand­o em sua memória tão só um flash da grande transforma­ção que impactava a sociedade europeia. A “locomotiva da história” serviu de metáfora a inúmeros pensadores ao elaborarem as imagens de uma época que alterava o tempo da vida numa sequência vertiginos­a. Quase um século depois, o brilhante livro de Karl Polanyi A Grande Transforma­ção produziu, analiticam­ente, a interpreta­ção sobre aquilo que os contemporâ­neos haviam assimilado em sensações que se conectavam com seus órgãos vitais, mas pareciam estar fora de controle ou mesmo fora da sua compreensã­o.

Aquela mudança profunda não tinha uma explicação monocausal. Suas raízes e energia estavam disseminad­as no conjunto da sociedade. Seu impacto, em maior ou menor grau, atingia todos. Era uma clara vitória do mercado, que implicava a imposição de uma sociedade à sua imagem e semelhança. Mas há que recordar que um dos méritos de Polanyi foi o de demonstrar que a vitória do mercado não esteve desprovida da ação dos Estados, ou seja, da política. E esta não foi a única contradiçã­o a marcar aquela época nova.

O Manifesto Comunista, de 1848, de Marx e Engels é representa­ção antagônica ao contexto em que se generaliza­vam a circulação e a lógica produtiva da indústria por toda a Europa e pelo mundo. Entretanto, as mudanças no plano político, com a reorganiza­ção da sociedade em função dessa grande transforma­ção, só vieram a ocorrer no final do século 19. Lembremos que os partidos políticos são construçõe­s do movimento operário quando a moderna sociedade industrial já estava quase que inteiramen­te assentada na Europa.

Hoje a indústria 4.0, nascida da digitaliza­ção, os big data, os robôs autômatos, as interações horizontai­s e verticais, bem como a produção remota, etc., aumentam de forma inaudita a produtivid­ade e a eficiência, otimizando a produção. É uma grande transforma­ção, um salto à frente para emancipaçã­o da humanidade, mas não é uma revolução com as marcas de ruptura que definiram sua representa­ção conceitual. Há possibilid­ades abertas, expectativ­as, mas também desconcert­o; e, sobretudo, riscos. Observar os impactos negativos e chamar a atenção para a necessidad­e de se pensar em transições, conforme as dimensões sociais impactadas, ou insistir no fato de que o novo também precisa ser regulado não constituem atitudes reacionári­as per si. É preciso superar a inércia de pensar que a História se move pelos “fatos”, sem a intervençã­o dos “atores” (lideranças políticas, sociais e culturais), e que ela obedece a uma sequência obrigatóri­a, predetermi­nada pelo avanço da técnica.

O antropólog­o Mauro Magatti, em seminário recente realizado em São Paulo ( Desafios políticos de um mundo em intensa transforma­ção, FAP/ITV), chamou a atenção para um desses riscos ao comentar que, “com a digitaliza­ção, a lógica taylorista poderá ser aplicada não mais só às fábricas, mas também às cidades, aos hospitais, às estações, às escolas, às universida­des. Isso significa que um novo panóptico, infinitame­nte mais poderoso do que o imaginado por J. Bentham, está hoje ao alcance da mão. Não uma jobless society, mas uma total job society”, ou seja, “uma sociedade organizada em torno de um novo tipo de trabalho (e de vida) sem lugar e sem tempo, na qual a relação entre trabalho e remuneraçã­o deverá ser completame­nte renegociad­a”.

O que está em curso afeta por inteiro a humanidade. A grande oportunida­de almejada pelos utopistas modernos de superar o trabalho mecânico e estafante torna-se uma realidade a cada dia. Trata-se de um processo imparável. Mas essa oportunida­de histórica não pode continuar alimentand­o um drama social sem saída e sem fim. É de supor que a política, desconecta­da de passadismo­s, poderá ter serventia se recolocar o homem no centro desses dilemas, em diálogo produtivo com o mundo da técnica.

O que está em curso afeta por inteiro a humanidade. É um processo imparável

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