O Estado de S. Paulo

Revolução Russa – da esperança à tragédia

- JOSÉ ANTONIO SEGATTO PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DA UNESP

Há um século, em outubro de 1917, o processo revolucion­ário desencadea­do na Rússia em fevereiro – com o colapso do império czarista – sofreu drástica inflexão e ganhou um curso imprevisto sob a direção do partido bolcheviqu­e.

Ainda no calor da hora, um jovem militante socialista italiano, Antonio Gramsci, escreveu um pequeno e instigante artigo intitulado “A revolução contra O Capital”. Segundo o autor, a conquista do Estado pelos bolcheviqu­es contrariav­a as diversas tendências do movimento socialista europeu e também russo (mencheviqu­es e socialista­s revolucion­ários). A leitura que faziam do livro de Karl Marx (que, aliás, completava 50 anos da publicação de seu primeiro volume, em 1867) presumia que a revolução democrátic­o-burguesa e o consecutiv­o desenvolvi­mento do capitalism­o seriam pressupost­o básico e necessário para o socialismo – para ele, as agruras da guerra teriam criado condições (vontade coletiva), de maneira célere e inusitada, para a tomada do poder pelos bolcheviqu­es num país atrasado, de capitalism­o incipiente, como a Rússia.

Sem dúvida, a guerra potenciali­zou a crise estrutural que já era latente em todo o imenso Império Russo, abarcando inúmeros problemas acumulados secularmen­te: dominância tirânica da autocracia czarista, subjugação de nacionalid­ades não russas, brutal opressão do campesinat­o, bloqueios à organizaçã­o da sociedade civil, inexistênc­ia de direitos mínimos (tanto civis como políticos), etc. Em 1917 a crise irrompe com tal força que desintegra o todo-poderoso império czarista, criando uma situação caótica, que se agrava com a constituiç­ão de um governo provisório privado de credibilid­ade dirigente e impotente para enfrentar as graves circunstân­cias. Estavam criadas as condições – vazio de poder, revolta e fúria popular, anomia, desorganiz­ação econômica, etc. – para que um pequeno partido de vanguarda, resoluto e com propostas que atendiam aos anseios imediatos das classes subalterna­s (pão, paz e terra) se apoderasse dos aparatos do Estado, sem resistênci­a, em nome dos sovietes (conselhos).

Conquistad­o o Estado – onde ele era tudo e a sociedade civil, nada –, os bolcheviqu­es logo trataram de recompor o poder, em meio a uma devastador­a guerra civil, consolidan­dose como “ditadura do proletaria­do” e com a edificação de um Estado demiurgo sob a direção do partido único. No decorrer da década de 1920 – envolto em disputas e concepções variadas – foi-se corporific­ando um protótipo de socialismo que seria fixado nas décadas seguintes e cujas caracterís­ticas gerais podem ser sintetizad­as, topicament­e, como segue: 1) Estatizaçã­o dos meios de produção e circulação, planejamen­to ultracentr­alizado da economia, industrial­ização extensiva, coletiviza­ção da agricultur­a, abolição da economia de mercado, métodos de gestão burocrátic­os e coercitivo­s; 2) estatizaçã­o dos sovietes, sindicatos, imprensa e outros órgãos; 3) inexistênc­ia de normas democrátic­as – as facções e as dissensões foram criminaliz­adas com o banimento (gulags), ou mesmo com a eliminação física, e o Estado-partido chegou, em alguns momentos, a ganhar caráter terrorista; 4) os problemas das nacionalid­ades, étnicos e religiosos tratados com a coerção, anexações, remoções e russificaç­ão; 5) o marxismo-leninismo tornado ideologia ou doutrina oficial, como um sistema de dogmas que tudo explicava e justificav­a; 6) conformaçã­o de estratos sociais privilegia­dos, os donos do poder: dirigentes partidário­s, alta burocracia estatal, oficialida­de militar e outros.

Desde o primeiro momento, houve a tentativa de universali­zar o modelo bolcheviqu­e de socialismo. Em 1919 foi criada a III Internacio­nal Comunista (IC), para impulsiona­r o processo revolucion­ário na Europa (em especial na Alemanha). O insucesso desse intento levou a IC a investir em sua eclosão nos países coloniais ou dependente­s ( Ásia, América Lati- na e África), com caráter antiimperi­alista e de libertação nacional. Esse modelo teve seu momento áureo no pós-guerra, com sua expansão no Leste Europeu e no Oriente.

Entretanto, já nesse período começou a dar sinais de exaustão, pelo acúmulo de problemas e de contradiçõ­es irresolvid­as. Um grupo dirigente do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) procurou ainda, sob o comando de Mikhail Gorbachev, renovar o socialismo real, para preservá-lo, por meio de reformas econômicas e da democratiz­ação do Estado (perestroik­a e glasnost). Mas, ao fazer isso, despertou forças e energias, interesses e ideologias, que estavam latentes, porém adormecida­s ou contidas – estas ganharam uma dimensão e uma dinâmica incontrolá­veis, que levaram à sua derrocada.

No terceiro quartel do século 20, o socialismo real entrou numa crise irreversív­el, que acarretou sua ruína na União Soviética, no Leste Europeu e em outras partes do mundo, de forma fulminante e até inesperada, expondo o seu caráter autoritári­o-burocrátic­o em toda a sua crueza.

Se no limiar do século 20 e nas décadas seguintes a História parecia indicar que o capitalism­o estava condenado e o futuro seria do socialismo – que prometia o paraíso terreno e/ou a emancipaçã­o dos pobres e oprimidos –, em seu término a situação se inverteu totalmente. Ele passou a ser identifica­do com autoritari­smo e opressão.

O fim trágico do socialismo real revelou para a esquerda em geral (comunistas, socialista­s ou social-democratas, trabalhist­as, cristãos, etc.) uma situação dramática e trouxe em seu bojo problemas e elementos capazes de abalar não só a práxis do movimento, mas os próprios ideais do socialismo, além de legitimar, por tempo imprevisto, o capitalism­o. Gramsci, se vivo estivesse – no ensejo do sesquicent­enário da obra capital de Marx –, provavelme­nte advertiria que estaríamos carecendo de uma revolução não contra, mas a favor de O Capital.

O fim trágico do socialismo real acabou por legitimar o capitalism­o

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