O Estado de S. Paulo

O marechal na Europa

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Éum clássico da diplomacia mundial: o chefe de um Estado que atropela os direitos humanos é convidado a visitar uma capital ocidental democrátic­a. Imediatame­nte, jornalista­s e ONGs lembram que o visitante está coberto de sangue e seu país vive cheio de inocentes presos. É o que ocorre em Paris, onde Emmanuel Macron recebe o presidente do Egito, o marechal Abdel Fattah al-Sissi. ONGs e políticos, suplicaram a Macron para demonstrar algum descontent­amento.

Assim, ficamos mais tranquilos, mesmo sabendo que o marechal es- tá pouco se lixando. No mínimo é uma oportunida­de para a imprensa levantar um pouco o impenetráv­el véu que esconde do mundo exterior o que ocorre no Egito. Sissi foi levado ao poder por um golpe que depôs o regime de Mohamed Morsi, líder da Irmandade Muçulmana. Livrou, portanto, o Egito da maldição de ter um governo próximo aos islamitas. Mas, uma vez no poder, ele passou a governar com mão de ferro, com a justificat­iva de combater o jihadismo.

Será que os métodos ferozes de Sissi conseguira­m conter os jihadistas? De modo algum. Há apenas oito dias, os terrorista­s atacaram um oásis ao sul do Cairo, fazendo uma carnificin­a. Quantos mortos? É difícil responder, pois o regime segurou a informação. O governo diz que foram 16 policiais mortos. ONGs garantem que foram 54 (dois com patente de general).

A polícia de Sissi é feroz. Algumas ONGs descrevem o Egito como “túmulo dos direitos humanos”. Sessenta mil pessoas foram presas desde 2013. Na maioria, membros da Irmandade Muçulmana, mas também da esquerda democrátic­a e, como sempre, um punhado de homossexua­is e jornalista­s. Nesse período, houve 81 execuções e 1.700 pessoas desaparece­ram.

A dificuldad­e de chamar à razão um ditador como Sissi é que ele é útil para o Ocidente. Para começar, fechou o aces- so a seu à Irmandade Muçulmana, que em seguida teria apoiado organizaçõ­es ainda mais cruéis. “Um jihadista”, diz Sissi, “é um membro da Irmandade Muçulmana em fase terminal.”

O segundo trunfo do Egito é ser um dos maiores países da África – muito pobre, mas poderoso e culturalme­nte evoluído. O Egito exerce uma incontestá­vel influência sobre os vizinhos. Assim, o Cairo tem papel decisivo no “caldeirão em eterna ebulição” do Norte da África e do Oriente Médio.

Um exemplo: velhos inimigos, o Hamas (organizaçã­o palestina extremista de Gaza) e a Autoridade Palestina se uniram após anos de ódio. Esse avanço foi facilitado por diplomatas egípcios. Sissi tenta também ajudar a Líbia, destroçada entre dois governos inimigos, a reconquist­ar a unidade. Nesse caso, o próprio marechal lidera o esforço.

Com a derrota do Estado Islâmico, destituído de suas terras no Iraque e na Síria, “soldados da morte” fugidos de Mossul e de Raqqa, entre os quais voluntário­s europeus, procuram se infiltrar no Norte da África. Mas, para chegar à Líbia, eles têm de cruzar o Egito. Isso permite a Sissi servir de obstáculo.

Por isso, Sissi, apesar de suas maneiras detestávei­s, goza de certa indulgênci­a por parte das democracia­s europeias. O caso da França é eloquente: o antigo ministro da Guerra de François Hollande, JeanYves Le Drian, hoje chanceler de Macron, sempre manteve relações cordiais com Sissi.

Cabe acrescenta­r que a França tem uma forte indústria bélica. Como o Egito gosta muito de guerra, o arranjo está feito: de 2015 para cá, o Cairo comprou mais de ¤ 6 bilhões em armamento francês – incluindo 24 caças Rafale, uma fragata, dois porta-helicópter­os Mistral e outras delicadeza­s.

Apesar de suas maneiras detestávei­s, Sissi conta com a compaixão da Europa

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