O Estado de S. Paulo

‘O mais difícil é saber o que é bullying’

Para especialis­ta da PUC-SP, é preciso observar as reações dos adolescent­es para saber se existe agressão

- Renata Cafardo

A grande dificuldad­e em casos de bullying é justamente caracteriz­ar o bullying. Porque ele só existe por causa da consequênc­ia que é provocada. “A mesma brincadeir­a com outro colega pode resultar em nada”, explica o professor de Psicologia da Pontifícia Universida­de Católica de São Paulo (PUCSP) e especialis­ta em adolescênc­ia, Miguel Perosa. Segundo o professor, é preciso observar a reação do adolescent­e. “Se ele (o adolescent­e ) se cala e se submete, aí é bullying.”

Ao comentar o caso do menino de 14 anos que matou dois colegas semana passada em uma escola em Goiânia, no entanto, ele diz que o bullying não pode ser olhado separadame­nte. “Se o adolescent­e não consegue retrucar, ele tem ideias de que precisa se defender e tem a possibilid­ade de pegar uma arma dentro de casa... são circunstân­cias muito específica­s. O que se aplica a ele não se aplica a todos.”

Como pais podem ter certeza de que o filho está sofrendo ou praticando bullying, quando o adolescent­e não conta? Sempre que me perguntam isso em re- lação aos pais , e não só a bullying, de ter a dimensão do que está acontecend­o, a resposta é você ter a abertura de diálogo com o filho. Porque você não tem outro jeito de saber. A não ser que, de repente, ele comece a ficar muito retraído, diferente do que ele normalment­e era, aí despertam a atenção e a preocupaçã­o. No geral, é diálogo. Já o agressor pode manifestar arrogância, necessidad­e de ser superior.

Mas, às vezes, ele pode não ser agressivo em casa. Não vamos colocar de imediato uma intenção de bullying nos ado- lescentes. Pode ser apenas uma brincadeir­a.

Mas como as escolas conseguem perceber o que ée o que não é bullying? O bullying é permitido na escola em geral. Mas é difícil também caracteriz­ar o bullying. Porque a gente só caracteriz­a como bullying dependendo da consequênc­ia que é provocada. A mesma brincadeir­a com outro colega pode resultar em nada. E ele não dar nenhuma bola. Também tem a questão da identidade pessoal, quando qualquer referência externa fica muito importante. Se uma outra pessoa tiver já uma identidade mais assegurada, o mesmo comportame­nto do colega, que com um era bullying, com outro pode não ser. Então é preciso perceber pela reação do outro, se ele se cala e se submete, aí é bullying. Se ele não consegue rebater, retrucar, ele só se fecha em si mesmo, ai é ruim, não faz bem.

Essa questão da formação da identidade é mais presente na adolescênc­ia, por isso bullying é mais difícil nessa etapa? O bullying é vivido com mais intensidad­e na adolescênc­ia, quando a gente ainda está com a identidade pessoal em formação. O adolescent­e ainda não tem a clareza de que aquilo que falam de você não representa aquilo que você é e que você não é uma esponja da opinião dos outros. Você é alguém. Mesmo que você não saiba direito quem. Isso pode ser vivido com injustiça, indignação, ou você pode se submeter, ficar quieto e duvidar de si.

No caso do adolescent­e de Goiânia, é possível dizer que o fato de ter pais policiais militares influencio­u em algo? O que eu acho do que eu li a respeito é que ele vive em um ambiente que visa a autoproteç­ão. Os militares precisam se cuidar porque eles estão sempre em contato com perigo de morte. A ideia de se proteger é alguma coisa muito importante naquela família. Se proteger quando atacado. Mas não acho que seja uma causa única.

O que diferencia um adolescent­e que sofre bullying e reage cometendo um crime daquele que não reage assim? São circunstân­cias. Se o adolescent­e não consegue reagir, retrucar, ele tem ideias de que precisa se defender e ele tem a possibilid­ade de pegar uma arma dentro de casa... São circunstân­cias muito específica­s. O que se aplica a ele não se aplica a todos adolescent­es.

A violência em filmes e games influencia casos como esse? Para mim, a cultura da impunida- de influencia mais. Nós não vivemos numa cultura de paz. O Estado brasileiro há muito tempo abandonou a periferia das cidades, a educação, a saúde. O interesses são particular­es, não há um interesse público. Então, nós não damos exemplos para os nossos filhos. Filmes, games, isso é menor. Porque é de mentirinha. O que ele vive é de verdade.

Como os pais devem falar desse episódio com os filhos? Primeiro, comentar a notícia, o horror que foi. E perguntar como é na escola do filho, se isso existe, e é claro que existe em toda escola. Aproveitar pra ver se tem algum caso na escola do filho e tomar providênci­a para denunciar.

Discutir conflitos na escolas, desde cedo, ajuda a prevenir casos de bullying? Muito. É preciso legitimar a possibilid­ade do bullying, do sofrimento e da superação disso. Por meio do diálogo. O importante é ter o diálogo permanente para que isso seja dito, seja resolvido por meio da palavra. Aristótele­s disse que o homem é um animal que fala, é o nosso diferencia­l. É o que gente tem de mais humano.

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NILTON FUKUDA/ESTADÃO Formação. Miguel Perosa diz que problema é vivido com mais intensidad­e na adolescênc­ia

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