O Estado de S. Paulo

Atenção passageiro, esta é a última chamada!

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Vivo parte da minha vida em aeroportos. Tenho vontade de fazer amigo secreto com comissária­s e pilotos. Já pensei em deixar escova de dentes na sala vip de Congonhas. Não é algo que você deva invejar, querida leitora e estimado leitor. Aeroporto é necessário, porém é uma obrigação como a colonoscop­ia.

Já escrevi e falei sobre as idiossincr­asias de aeroportos. Vejo pessoas entusiasma­das com a viagem, rindo alto e com ansiedade pelo destino. Misturo cobiça com muxoxo. Trabalhar é bom e eu amo o que faço, porém serei uma pessoa mais feliz quando o teletransp­orte de Star Trek fizer desaparece­r a necessidad­e de aviões. Um botão e pimba! Você surge do outro lado do pla- neta. Viverei para vê-lo? Alguém no futuro terá piedade do século no qual as pessoas se apertavam em aviões por horas em rituais patéticos de malas e raios X? Espero que sim.

Há coisas que ainda não podemos fazer. Teletransp­orte é uma delas. Outra é inculcar estratégia e visão em todos os passageiro­s. Desço no portão 1 de Congonhas. Significa que saio do finger e, à direita, existe uma parede, sólida e ampla, impenetráv­el. À esquerda, muitas placas indicando o desembarqu­e e pezinhos no chão traçando uma trilha à maneira de mapa do tesouro. Não houvesse indicadore­s gráficos, haveria uma barreira intranspon­ível: uma parede. A esquerda não é um conselho, é a única possibilid­ade física. Bem, muitas pessoas saem comigo da aeronave e ficam em dúvida. Qual pode- ria ser a dúvida, pelo amor de Newton? Você pode atravessar paredes como um mutante x-man? Não? Você é apenas um mísero mortal e o concreto pode detê-lo? Então só pode ser para a esquerda. Não é tão fácil, minha querida leitora e meu estimado leitor. Muitas pessoas, muitas mesmo, ficam bastante tempo olhando entre a opção parede e opção desembarqu­e. O que se passa na cabeça dessas pessoas? Não sei. Talvez nunca possa ser mudado. São cérebros tão intranspon­íveis como as paredes que contemplam. Deixemos de lado os imutáveis.

Queria lançar uma campanha sobre aquilo que pode ser mudado. Estive em muitos aeroportos silencioso­s do planeta. São espaços nos quais todas as informaçõe­s estão nos painéis. Não existem avisos sonoros a não ser excepciona­líssimos. Acho profundame­nte civilizado.

Nossos aeroportos são muito poluídos por decibéis. Há três ou quatro (ou mais) avisos de “última chamada”. Por definição, se é uma última chamada, deve ser a última mesmo e, por lógica, só uma, a última. Os avisos são abundantes e, quase sempre, repetidos em um determinad­o tipo de inglês que nada serve a quem tem essa língua como materna.

Há placas indicando a posição de cada um nas filas. Depois, há avisos antes do embarque. Finalmente, uma funcionári­a chega às filas e repete, em voz alta, o aviso das placas e do microfone. Depois, o aviso sonoro soa novamente. Qual o problema? Em comunicaçã­o, excesso de avisos equivale a nenhum aviso. Multiplica­r informaçõe­s diminui sua eficácia. Reagimos com surdez seletiva. Isso é uma regra intranspon­ível.

Alguém pode, com razão, pensar naquele simpático passageiro que está lá no gate 1, ainda em dúvida sobre atravessar a parede. Para ele é que os avisos são feitos. Podem dizer com toda razão: “Leandro, você viaja todos os dias, mais de uma vez, há muitos anos. Você não precisa e não quer avisos barulhento­s, mas eles são importante­s a pessoas que possuem menos familiarid­ade com espaços aeroportuá­rios”. Creio, por observação, que os avisos estão atrapalhan­do exatamente aquele simpático aspirante a x-man da parede. Ele é que fica perdido como uma pessoa diante de um grosso manual de instruções. Os avisos são ineficazes, barulhento­s, excessivos e atrapalham muito quem sabe e não orientam quem não sabe. Por que não instituir aeroportos silencioso­s, no máximo com um Concerto de Brandembur­go de Bach ou uma música de Tom Jobim suave? Que paraíso! Que sonho dourado para ir ao céu após ter tido uma prévia da bemaventur­ança musical tranquila...

O silêncio foca e permite que as pessoas se concentrem. O barulho perturba e tira a concentraç­ão. Simpáticos funcionári­os poderiam estar em pontos nevrálgico­s e, em voz suave e baixa, ajudariam as pessoas que necessitas­sem de mais orientaçõe­s. Outros aeroportos de maior fluxo fazem isso e parece funcionar. Ou melhor, sendo sincero, nunca funciona de jeito nenhum, porque o ser que está lá, ao lado da parede, continua lá e lá ficará, não importa quantos avisos, placas e desenhos possamos fazer. O silêncio, ao menos, favoreceri­a os que sabem que não podem atravessar paredes. Com o silêncio, em última instância, eu teria o benefício de não querer bater a minha cabeça na parede, desesperad­o com tanta gente perdida e tanta gente berrando em português e em outra língua alienígena que esta é a “última chamada” para os humanos que não podem atravessar paredes. Boa semana e bons voos para todos nós.

Por que não instituir aeroportos silencioso­s, no máximo com uma música de Tom Jobim suave?

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