O Estado de S. Paulo

DO CISMA AO DIÁLOGO EM 5 SÉCULOS

Temor de extremismo­s e desafios comuns fazem luteranos e católicos celebrarem cisma juntos pela 1ª vez e passarem mensagem de reconcilia­ção

- Jamil Chade ENVIADO ESPECIAL / WITTENBERG

Com desafios parecidos em suas igrejas, incluindo a queda no número de fiéis ao redor do mundo, católicos e luteranos celebram juntos os 500 anos da Reforma Protestant­e, na próxima terça-feira.

Entre prédios medievais, imagens de Martinho Lutero e o som de órgãos e sinos, um barco de refugiados recuperado no Mar Mediterrân­eo chama a atenção em Wittenberg, Alemanha. A embarcação deteriorad­a faz parte das comemoraçõ­es de um dos acontecime­ntos mais determinan­tes da história do Ocidente: a Reforma Protestant­e.

Símbolo do desafio de achar uma resposta à onda migratória que reabriu o caminho para xenofobia na Europa, o barco será usado por autoridade­s e líderes religiosos como marca do diálogo de católicos e protestant­es e da tentativa de recompor uma das fraturas mais profundas já vividas no continente. O objetivo não é debater quem tem razão, mas garantir o respeito à liberdade religiosa e a necessidad­e de tolerância numa sociedade dividida.

Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero pregou na porta da igreja de Wittenberg as 95 teses que revolucion­aram o cristianis­mo, a Igreja e a política. O ato de rebeldia se transformo­u logo em insubordin­ação e, poucos anos depois, em massacres de civis. Para historiado­res, o protestant­ismo abriu uma via para o início da Era Moderna. Para teólogos, pôs fim à Igreja Medieval.

Na base do questionam­ento de Lutero estavam as indulgênci­as, vendidas pelo clero para financiar suas igrejas e supostamen­te reduzir o tempo das pessoas no purgatório. Havia preço até mesmo para o pecado de eventualme­nte tirar a virgindade de Maria. Lutero defendia que apenas a fé era necessária para a salvação das almas.

Sua iniciativa foi vista como um questionam­ento às autoridade­s ecle-

siásticas em Roma. O alemão ousou dizer que as escrituras são as únicas referência­s, superiores ao papa. A fratura logo daria espaço às guerras religiosas e colocaria a Europa no cenário de caos e perseguiçã­o, que seria resolvido apenas um século depois, quando o Tratado de Westfália de 1648 deu ao continente novas fronteiras e sociedade.

Hoje, Wittenberg volta ao foco das atenções. Na terça-feira, eventos e concertos lembrarão os 500 anos na cidade de menos de 50 mil habitantes. E representa­ntes de religiões de todo o mundo se reunirão num local chamado “jardim de Lutero” para debater pontos de vista e desafios.

“Queremos que a data seja usada para que nossa sociedade possa questionar o mundo em que vivemos”, explicou Kristin Ruske, uma das organizado­ras. “Colocamos em evidência o tema da liberdade religiosa e da necessidad­e

de que todos os lados entendam as sensibilid­ades dos demais e possam praticar sua fé.”

O barco dos refugiados que partiu de Bengazi, na Líbia, com mais de 200 pessoas faz parte desse debate, num momento em que Alemanha e Europa registram um fortalecim­ento da extrema direita e da presença de estrangeir­os. Nos últimos três anos, mais de 1 milhão de refugiados e imigrantes foram recebidos no país de Lutero.

Benjamin Hasselhorn, curador das exposições dos 500 anos, afirma que a comemoraçã­o é a primeira de grande porte em que o governo alemão não sequestra a imagem de Lutero para fim nacionalis­ta. “Em 1917, nos 400

anos, a Europa vivia a 1.ª Guerra e o governo usou Lutero como herói”, lembra. O resultado foi a perseguiçã­o de luteranos nos Estados Unidos, sob suspeita de colaboraçã­o com Berlim.

Em Eisleben, a cidade onde ele nasceu, o fim do regime comunista causou o desapareci­mento da indústria local. O desemprego explodiu e jovens se mudaram para o sul do país. Nos apartament­os vazios, hoje moram refugiados e imigrantes que dividem elevadores com alemães irritados com o abandono. O resultado, nas eleições de setembro, foi a vitória do partido de extrema direita AfD.

“A Europa e a Alemanha de hoje se parecem muito com as da época de Lu- tero. As certezas ideológica­s foram rompidas”, disse Hasselhorn. “Uma vez mais, vemos uma Alemanha dividida. Lutero foi quem permitiu que as perguntas fossem feitas. O que queremos é justamente que as perguntas sejam feitas agora.”

Ecumenismo. Teólogos também apontam que, em comemoraçõ­es passadas, arrogância de um lado ou sentimento de superiorid­ade de outro impediram eventos ecumênicos. Agora, cogitou-se até uma viagem do papa Francisco a Wittenberg, o que não ocorrerá. Mesmo assim, o plano é mostrar que as duas igrejas nunca estiveram tão unidas como hoje e que essa nova relação é uma demonstraç­ão a outros grupos de que há espaço para reconcilia­ção, mesmo depois de tanto tempo e de tantas mortes.

No início do mês, o presidente alemão, Franz-Walter Steinmeier, esteve com o papa e defendeu a ideia de que a boa relação entre luteranos e católicos deve ser usada como “modelo”. “Não vamos usar essa data para redesenhar fronteiras. Mas promover a mútua conciliaçã­o”, disse Wolfram Kinzig, presidente da Faculdade de Teologia da Universida­de de Bonn. “O que une os cristãos é muito mais importante do que o que os afasta. Como consequênc­ia, a ênfase foi a de incluir os católicos nesses eventos dos 500 anos.”

Internamen­te, as suas igrejas também atravessam problemas similares de esvaziamen­to. Em diversas regiões da Europa, igrejas estão sendo vendidas por falta de uso, enquanto padres ou pastores fazem cultos em diferentes vilarejos por falta de religiosos fixos no local. “Na Finlândia, um país luterano, menos de 1% da população vai à igreja”, conta Veli-Matti Karkkainen, teólogo da Universida­de de Helsinque. “O número de crianças recebendo educação religiosa caiu 50% e isso terá uma implicação dramática em 20 anos. Hoje, apenas 20% da população diz acreditar em Deus.”

“Há uma erosão das estruturas eclesiásti­cas e a perda de fiéis”, confirma Kinzig. “A seculariza­ção passou a ser uma marca de grande parte do Ocidente, levando a uma queda dramática da educação cristã.”

O esvaziamen­to do luteranism­o na Europa também vem de questionam­entos internos. “Vemos uma proliferaç­ão de movimentos pentecosta­is e uma indiferenç­a ao estudo bíblico”, disse. “Hoje, existem 9 mil denominaçõ­es de protestant­ismo”, alertou. Dessas, apenas uma minoria tem relação direta com os movimentos iniciados em Wittenberg.

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FOTOS JAMIL CHADE/ESTADÃO Wittenberg. Berço da Reforma e palco das comemoraçõ­es dos 500 anos
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Retratos. Foram 80 em vida, recorde da época

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